![]() |
Fotografia
retirada de http://antologiaeccears.blogspot.pt
|
O hábito da competição tende a invadir
com facilidade domínios que lhe são estranhos. Tomemos, para exemplo, a
leitura. Há dois motivos para se ler um livro; um, o próprio prazer da leitura;
o outro, a possibilidade de alardear conhecê-lo. Tornou-se moda na América as
damas lerem (ou afectarem ler), todos os meses, certos livros; umas lêem-nos,
outras procuram apenas o primeiro capítulo e algumas lêem só as críticas, mas
todas têm esses livros nas suas estantes. Não lêem, porém, nenhuma obra-prima.
Nunca o Hamlet ou o Rei Lear foram em qualquer mês seleccionados
por um dos Book Clubs; nunca também
foi necessário conhecer a obra de Dante. O que se lê são livros modernos,
geralmente medíocres, e nunca obras-primas. Isto é ainda um efeito de
competição, e possivelmente não muito mau, pois a maior parte dessas damas,
abandonadas a si próprias, longe de lerem obras-primas leriam livros ainda
piores do que os seleccionados pelos seus orientadores e mestres literários.
A importância do espírito de
competição na vida moderna está em relação com o declínio do nível de cultura,
tal como sucedeu em Roma depois do século de Augusto. Homens e mulheres parece
terem-se tornado incapazes de apreciar os prazeres mais intelectuais. A arte da
conversação, por exemplo, levada à perfeição nos salões franceses do século
XVIII, era ainda há quarenta anos uma tradição viva. Era uma das artes mais
delicadas, que requeria grandes faculdades de espírito, mas a sua finalidade
era absolutamente evanescente. Quem nos nossos dias fará caso de ocupação tão
ociosa? Na China, esta arte ainda florescia há dez anos, mas imagino que o
ardor missionário dos nacionalistas a tenha desde então varrido completamente
da existência. O conhecimento da boa literatura, que era universal entre as
pessoas educadas de há cinquenta anos, está agora confiado a poucos
professores. Todos os prazeres mais tranquilos foram abandonados. Alguns
estudantes americanos levaram-me a passear, na Primavera, a um bosque situado
na extremidade do seu campo de jogos, cheio de delicadas flores bravias, mas
nenhum dos meus guias conhecia ao menos o nome de uma delas. Qual seria a
utilidade de uma tal ciência? Ela não aumentaria os rendimentos de ninguém.
O mal não está simplesmente no
indivíduo, nem o indivíduo sozinho pode impedi-lo no seu próprio caso isolado.
O mal reside na filosofia da vida geralmente admitida, que concebe a existência
como uma luta, uma competição, na qual é devido respeito ao vencedor. Esta concepção
leva as pessoas a cultivarem indevidamente a vontade, a expensas do sentimento
e da inteligência. Possivelmente, dizendo isto, nós pomos o carro à frente dos
bois. Os moralistas puritanos exaltaram sempre a vontade, quando
originariamente se tinha dado mais força à fé. Pode ser que séculos de
puritanismo tenham produzido uma raça na qual a vontade esteja demasiado
desenvolvida e anulados o sentimento e a inteligência e que uma tal raça haja
adoptado a filosofia de competição como a mais apropriada à sua natureza. De
qualquer maneira, o êxito prodigioso desses modernos dinossauros que, como os
seus protótipos pré-históricos, preferem o poder à inteligência, faz com que
sejam universalmente imitados; tornaram-se o modelo para o homem branco em
todos os pontos do globo, e esse facto tem tendências para aumentar, em populações
crescentes, nos cem anos mais próximos. Aqueles, porém, que não seguem a moda,
podem consolar-se com a ideia de que os dinossauros não acabaram por triunfar;
mataram-se uns aos outros e espectadores inteligentes herdaram o seu reino.
In «A conquista da felicidade», de
Bertrand Russell (tradução de José António Machado), Colecção Filosofia &
Ensaios, Guimarães Editores, Janeiro de 2001 (9.ª edição).
Sem comentários:
Enviar um comentário