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Imagem retirada
de http://sauvage27.blogspot.pt
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O dia estava esplêndido, com um sol
que nos encadeava; à esquerda despontavam no céu azul as altas chaminés de
cúpula redonda, as cornijas alvas e os telhados vermelhos, enquanto à direita
se erguia o comprido paredão dos Estaleiros, severo e compacto. Os nossos olhos
estonteados pousavam em certas sombras profundas, nos pontos em que se ocultava
o espaço de uma pérgula ou se entrevia uma ruela apertada; e as águas brilhavam
em todos os tons de verde, reflectiam todas as cores, perdiam-se aqui e ali em
círculos e riscas de um negro denso. Dez ou doze garotos, num berreiro a plenos
pulmões, corriam e saltavam pelo passeio, que para o lado do canal não tinha
qualquer protecção. Uns eram pequeninos, outros maiorzinhos. Um dos pequenos,
quase nu, gorducho, de caracóis louros que lhe coroavam a carita rosada e
rechonchuda, fazia barulho que nem um endemoninhado, dando palmadas ou
beliscando os companheiros e fugindo depois como um raio.
Parei a observá-los, enquanto Remigio
me contava as suas grandezas passadas. De repente, aquele demónio de miúdo, não
conseguindo no meio de uma corrida precipitada controlar os pés à beira do
canal, caiu à água. Ouviu-se um grito e um baque, e logo a seguir encheram ares
os berros de todos os rapazes e de todas as mulheres que estavam antes a
conversar na rua ou às janelas; por entre aquele clamor sobressaía o grito
agudo, desesperado, aflitivo, da jovem mãe, que, lançando-se aos pés de
Remigio, o único homem presente, berrava: «Salve-mo, por favor salve-mo!»
Remigio, frio, gélido, respondeu à mulher: «Não sei nadar.» Entretanto, um dos
rapazes mais velhos lançara-se à água, agarrara pelos caracóis louros o pequeno
e puxara-o para a margem. Foi um instante. A gritaria transformou-se num aplauso
frenético; as mulheres e os rapazes choravam de alegria; acorria gente de todos
os lados para assistir, e o miúdo louro mirava tudo à sua volta com os grandes
olhos azuis-celestes, admirado com tanta confusão. Remigio, com um puxão
violento, arrancou-me do meio da multidão.
In «Senso – O caderno secreto da
Condessa Lívia», de Camillo Boito (tradução e introdução de José Colaço
Barreiros), Quetzal Editores, Lisboa, 1988 (1.ª edição).
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