Mikhail Cholokhov – fotografia retirada de http://upload.wikimedia.org
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A bateria deu uma descarga como a dizer adeus ao seu
capitão, que partia em longa viagem, e o estrondo quebrou qualquer coisa dentro
de mim. Voltei à minha unidade, semi-louco. Pouco depois, fui desmobilizado.
Mas não sabia para onde devia ir. Em todo o caso, não queria voltar a Voroneje.
Isso de modo nenhum. Lembrei-me de um bom camarada, reformado por ferimentos no
ano anterior e que vivia em
Ourupinsk. Tinha recebido dele um convite. Passei por casa
dele para o visitar.
O meu camarada e sua mulher, sem filhos, tinham a sua própria
casinha nos arrabaldes. Apesar de ter uma pensão, continuava num serviço de
camionagem. Arranjei também ali o mesmo trabalho. Fiz a princípio camionagem de
todos os tipos pelas aldeias e, por fim, no Outono, passei a transportar as
colheitas. Foi nestas andanças que travei conhecimento com o meu novo filho,
aquele garoto que vês a brincar na areia.
Depois de uma viagem, quando entramos numa terra, a primeira
coisa a fazer é, naturalmente, ir tasquinhar na taberna, regar a comida com uma
canecada, de forma a passar a fadiga. É preciso dizer que, por estes tempos,
tinha criado o meu hábito de beber uma caneca de qualquer coisa prejudicial…
Foi numa ocasião dessas que eu vi este garoto diante da taberna; no dia
seguinte, voltei a vê-lo. Esfarrapado, lambuzado com sumo de melancia e poeira,
porco por ter andado entre os canaviais, desgrenhado, mas com uns olhos… que
pareciam estrelas depois da chuva. Naquele aspecto gostava tanto dele – é
esquisito, não é? – que tinha pressa de regressar com ganas de voltar a vê-lo. O
pobre alimentava-se do que as pessoas lhe davam, ali à roda da taberna.
No quarto dia, voltei directamente à taberna vindo da granja
com o camião carregado de cereal. Sentado nos degraus superiores, o garoto
balançava os seus pezinhos e via-se bem que tinha o estômago vazio. Meti a
cabeça na portinhola do carro e gritei-lhe: «Sobe cá, meu pequeno Vania! Vamos
até ao silo, voltarás comigo e iremos almoçar juntos». Ele, ao ouvir o meu
grito, teve um sobressalto, desceu dos degraus, subiu para o estribo e
perguntou-me, baixinho: «Como sabe você que me chamo Vania?» Olhava para mim
com os seus olhinhos muito abertos à espera da resposta. Então respondi-lhe que
eu era um freguês da velha que sabe tudo.
Passou à direita. Abri-lhe a portinhola, fi-lo sentar-se ao
pé de mim e acelerei. Ele era muito remexido. Pois bem! não se mexia e ficou
com ar pensativo, sempre a olhar-me por baixo das suas pestanas reviradas; por
fim, deu um suspiro. Aquele pobre pardalito já sabia suspirar! Naquela idade, já
teria desgostos? Perguntei-lhe: «Onde está o teu paizinho, Vania?» Murmurou:
«Morreu na guerra». – «E a tua mãezinha?» – «Foi morta por uma bomba no comboio
quando estava dentro dele». – «Donde vieste tu?» – «Não sei. Não me lembro». –
«Não tens família?» – «Não». – «Onde é que dormes?» – «Onde calha».
Uma lágrima deslizava dentro de mim. Decidi-me logo: «Não se
há-de dizer que se abandona um ser à sua mísera sorte. Vou tomá-lo comigo para
me servir de família». De repente senti-me leve e o meu coração iluminou-se. Inclinei-me
para o pequeno e perguntei-lhe muito docemente: «Vania, sabes quem eu sou?» –
«Quem é você?» perguntou ele, sustendo a respiração. «Sou o teu paizinho».
«Bom Deus, o que não fez ele! Saltou-me ao pescoço,
beijou-me as faces, a testa, a boca e depois chilreava como um tentilhão, tão
alto, tão agudamente, que só ele se ouvia dentro da cabina: «Querido paizinho,
eu bem sabia que tu havias de me encontrar, que tu me encontrarias de certeza! Mas
sabes, esperei por ti tanto tempo!»
Chegava-se para mim e estremecia como um talo de erva
agitado pelo vento. Eu tinha nevoeiro nos olhos. Pus-me também a tiritar e até
as mãos me tremiam! Como me foi possível segurar o volante, é coisa de admirar;
meti por uma cova cheia de água onde mergulhei o motor. Com medo de atropelar
alguém, não quis continuar enquanto o nevoeiro não se levantasse dos meus
olhos. Nos cinco minutos que para ali ficámos, o meu pobre garoto enroscava-se
contra mim com todas as suas forçazinhas e nada dizia; só sabia tremer! Mantinha-o
sob o meu braço direito, apertando-o um pouco. Com o esquerdo fiz dar ao camião
meia volta para seguir para casa. Que me importava a mim o silo… Estava nas
tintas para o silo…
Parei o camião à porta, tomei o meu novo filho nos braços e
levei-o para casa. Se tu visses como ele me segurava com as suas mãozinhas; não
havia maneira de o obrigar a largar-me; e depois a sua carinha estava colada à
minha barba de dois dias e nada podia descolá-la. Foi assim que o meti em casa. O meu camarada e sua
mulher estavam em casa.
Entrei e pisquei-lhes os olhos, dizendo: «Encontrei o meu
pequeno Vania! Temos a honra de vos cumprimentar, meus bons amigos!» Os dois,
sem filhos, compreenderam do que se tratava e puseram-se logo em acção. Mas o meu filho é
que não me largava. Tive de lho suplicar. Deixou-me lavar-lhe as mãos com sabão
e sentá-lo numa cadeira. A minha hospedeira encheu-lhe um prato de sopa de
couves. Era vê-la a olhar para ele enquanto devorava! Enterneceu-se e começou a
limpar as lágrimas no avental, diante da marmita. O meu Vania viu-a a chorar,
correu a puxar-lhe a saia e a dizer-lhe: «Porque chora? O paizinho encontrou-me
na taberna; estamos muito contentes; não vale a pena chorar». De repente, meu
Deus, a boa mulher rompeu em soluços, uma autêntica inundação.
In «O destino dum homem», de Mikhail
Cholokhov (tradução de A. Dias Gomes), Colecção «Uma hora de leitura» (n.º 11),
Edições Delfos, Lisboa, s/d [1957?].
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