Cláudio, no Museu Arqueológico
Nacional de Nápoles
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Chamava-se
Pólio, e conheci-o exactamente uma semana após as minhas núpcias. Trabalhava eu
na Biblioteca de Apolo quando vi entrar Tito Lívio acompanhado de um velhinho
vestido de senador.
–
Creio – dizia Tito Lívio – que seria melhor renunciar a isso, a menos que… Olha,
eis ali Sulpício! Se alguém o sabe, deve ser ele. Bom dia, Sulpício. Queres
prestar-nos um serviço, a Asínio Pólio e a mim? Queríamos consultar um livro:
um comentário das Tácticas Militares
de Políbio por um grego de nome Polémocles. Creio tê-lo visto aqui há tempos,
mas os catálogos não o mencionam e os bibliotecários não prestam para nada.
Sulpício
mastigou a barba um momento e depois respondeu:
–
Enganas-te. O autor chama-se na verdade Polemócrates, e, apesar do nome, não é
grego, mas judeu. Há quinze anos vi o livro na prateleira do alto, a quarta
após a janela, no fundo; a etiqueta dizia simplesmente: Dissertações sobre a Táctica. Espera, vou procurá-lo. Não creio que
o tenham mudado de lugar.
De
repente, Tito Lívio descobriu-me.
–
Como vais, meu amigo? Conheces o famoso Asínio Pólio?
Saudei-o.
–
Que lês tu, meu rapaz? – perguntou-me Pólio. – Tolices, estou certo, a julgar pela
maneira como o ocultas. Os jovens de hoje só lêem tolices. – E voltando-se para
Tito Lívio: – Aposto dez moedas de ouro como é alguma Arte de Amar, ou uma pastoral da Arcádia.
–
Aceito a aposta – disse Tito Lívio. – Cláudio não é um rapaz como os outros.
Vamos a ver, Cláudio! Quem foi que ganhou?
Gaguejando,
disse a Pólio:
–
Sinto-me feliz em poder dizer que perdeste.
Ele
cerrou as sobrancelhas.
–
Como assim? Feliz por eu ter perdido, hem? Então isso é modo de falar a um
velho como eu, e a um senador, ainda por cima?
–
Eu disse-o com toda a reverência. Sinto-me feliz que tenhas perdido, porque não
queria que se chamasse a este livro de «tolices». É a tua própria História das Guerras Civis, uma
belíssima obra, se me é permitido uma opinião.
A
fisionomia de Pólio iluminou-se. Sorriu, abriu a bolsa e deu, à força, as
moedas de ouro a Tito Lívio. Este, com o qual parecia estar num pé de amistosa
animosidade – sabeis o que quero dizer –, recusava-as com um ar meio sério,
meio brincalhão.
–
Meu caro Pólio, é-me impossível receber esse dinheiro. Tu tinhas razão; os
rapazes de hoje só lêem tolices. Nem uma palavra mais, peço-te; reconheço que
perdi; eis as dez moedas de ouro; pago-as com prazer.
Pólio
apelou para mim.
–
Vejamos, eu não sei quem és tu, mas pareces um rapaz de bom senso. Já leste as
obras do meu amigo Tito Lívio? Não são elas em todo o caso mais fúteis que as
minhas?
Sorri:
–
São, em todo o caso, mais fáceis de ler.
–
Mais fáceis, hem? Como?
–
Ele faz falar e agir os antigos romanos como homens de hoje.
Pólio
estava encantado.
–
Tocou no teu ponto fraco, Tito Lívio! Atribuis aos romanos de há sete séculos
ideias e discursos ridiculamente modernos. Lê-se facilmente, vá, mas não é
história.
O
velho Pólio era o homem mais bem dotado da época, sem exceptuar o próprio
Augusto. Próximo dos oitenta anos, estava em plena posse das faculdades mentais
e mais vigoroso que muitos homens de sessenta. Atravessara o Rubicão com Júlio
César e combatera Pompeu; depois servira sob comando do meu avô Marco António,
antes da sua questão com Augusto. Fora cônsul e governador da Espanha e da
Lombardia; tinham-lhe concedido um triunfo por uma vitória nos Balcãs. Fora
protector de Virgílio e Horácio, e amigo pessoal de Cícero, até ao dia em que
este o cansou. Era um distinto orador e autor de tragédias. Mas sobretudo há história
é que brilhava, pois o seu amor à verdade absoluta, que chegava ao pedantismo,
não se acomodava às convenções dos outros géneros literários. Com o espólio da
sua campanha nos Alpes havia fundado uma biblioteca pública – a primeira em
Roma. Havia agora duas novas: aquela onde nos encontrávamos e uma outra, que
tinha o nome da minha avó Octávia; mas a de Pólio era a mais bem organizada.
Sulpício
encontrara o livro e, depois de lhes terem agradecido, Pólio e Tito Lívio
continuaram a discussão.
–
O mal de Pólio – disse Tito Lívio – é que, escrevendo história, julga-se
obrigado a suprimir todos os sentimentos elevados e poéticos: faz as suas
personagens agirem da maneira mais trivial e recusa-lhes absolutamente toda a
capacidade oratória logo que os põe a falar.
–
Sim – disse Pólio. – A poesia é a poesia, a eloquência, a eloquência e a
história, a história: não se podem misturar.
–
Será? – responde Tito Lívio. – Então eu não devia escolher um assunto épico sob
o pretexto de que pertence à poesia, nem pôr na boca dos meus generais proclamações
que valham a pena, sob a alegação de que isso faz parte da eloquência?
–
Exactamente. A história é um relatório exacto do que aconteceu, do que os
homens fizeram e dissera, da maneira como viveram e morreram. Um assunto épico
não serve senão para falsear o relatório. As proclamações dos teus generais são
admiráveis, mas terrivelmente falsas. Já ouvi mais proclamações na minha vida
do que ninguém. Pois bem: César ou António poderiam ser excelentes oradores de
comício, mas eram muito bons soldados para ensaiar a sua eloquência nos seus
homens. Eles não arengavam; falavam-lhes, apenas. Que género de discursos nos
fez César antes da batalha de Farsália? Falou-nos das nossas mulheres, dos nossos
filhos, dos templos sagrados de Roma e da glória das nossas últimas campanhas? Oh,
não! Trepou para um cepo de pinheiro, com um grande rábano numa das mãos e uma
côdea de pão de soldado na outra, e gracejava connosco entre dois bocados. Nada
de pilhérias finas, as coisas pelo seu nome, sem rebuscar. Dizia que a vida de
Pompeu era casta em comparação com a sua. O que fazia com aquele rábano faria
rir um boi. Recordo ainda uma anedota picante sobre a maneira como Pompeu
ganhara o seu título de Grande… Oh!, aquele rábano! E uma outra ainda muito
pior, historiando as condições em que ele, César, perdera todos os cabelos no
bazar de Alexandria. Contar-te-ia as duas, se não fosse este jovem (aliás,
estou certo de que não compreenderia nada, pois não foi educado no Campo de
César). Nenhuma palavra acerca da batalha que se preparava: «Pobre do velho
Pompeu! Que êxito pode ter ele contra Júlio César e os seus homens!»
–
Não puseste isso na tua história – disse Tito Lívio.
–
Não nas edições públicas – replicou Pólio. – Não sou um imbecil. Se queres que
te empreste o suplemento secreto que acabo de terminar, aí o encontrarás. Mas
talvez nem te dês ao trabalho de mo pedir. Escuta o fim da história: César,
como tu sabes, era um imitador de primeira ordem. Parodiou-lhes Pompeu
pronunciando o supremo discurso antes de tombar sob a sua espada… sempre o
rábano, semicomido. Em nome de Pompeu, insultava os deuses imortais que
permitem sempre ao vício ganhar a virtude. Os homens torciam-se. Enfim
exclamou: «E é bem verdade, mesmo que Pompeu o tenha dito! Não hão-de ser vocês
que o negarão, seus imundos!» E atirou-lhes o resto do rábano. Que gargalhada
aquela! Nunca vi soldados como os de César. Lembras-te do que cantaram no seu
desfile, ao regressar das Gálias?
Está de volta, está de volta
O
Conquistador!
Quem tem mulher não a solta:
Está de volta, está de volta
O careca conquistador!
–
Pólio, meu caro – disse Tito Lívio –, nós não discutíamos os costumes de César,
mas a melhor maneira de escrever história.
–
Tens razão. O nosso jovem e inteligente amigo criticava o teu método, sob o
respeitoso pretexto de louvar a tua facilidade. Meu rapaz, tens outras
acusações contra Tito Lívio?
–
Não me faças corar – respondi-lhe. – Admiro muito a obra de Tito Lívio.
–
Diz-me a verdade: nunca notaste nele inexactidões históricas? Tens o aspecto de
quem lê muito.
–
Eu preferia não me arriscar…
–
Vamos, vamos. Deve haver qualquer coisa.
–
Confesso que há um ponto que me intriga. É a história de Porsena. Segundo Tito
Lívio, Lars Porsena não tomou Roma, foi impedido a princípio pela conduta
heróica de Horácio na ponte, depois pela surpreendente audácia de Cévola, que,
feito prisioneiro ao tentar assassiná-lo, mergulhou a mão na chama do altar e
jurou que trezentos romanos tinham feito, como ele, o juramento de executar
aquele assassínio. Em vista disso, Porsena firmou a paz. Mas eu vi o seu túmulo
em Closium; o friso representa os romanos saindo, sob o jugo, das portas da
cidade. Vê-se um sacerdote etrusco cortar à tesoura as barbas dos pais. E o
próprio Dionísio de Halicarnaso, embora sempre favorável a nós, conta que o
Senado votou, para Porsena, um trono de marfim, um ceptro, uma coroa de ouro e
uma toga triunfal, o que significa evidentemente que lhes prestaram as honras
soberanas. Pode bem ser que, a despeito de Horácio e de Cévola, Lars Porsena
tenha mesmo tomado Roma.
Tito
Lívio incomodou-se:
–
Espantas-me, Cláudio. Tens tão pouco respeito à tradição romana que dás crédito
às mentiras inventadas por antigos inimigos para diminuir a nossa glória?
–
Eu trato apenas de saber – disse com humildade – o que realmente se passou.
–
Vamos, Tito Lívio – disse Pólio –, responde ao jovem. O que foi que se passou?
–
Fica para outra vez – respondeu Tito Lívio. – Não nos afastemos do nosso
assunto; a melhor maneira de escrever a história. Cláudio, meu amigo: tu, que
tens ambições nesse género, qual de nós escolherás por modelo?
–
Embaraças esse pobre rapaz com as tuas ciumeiras – interveio Sulpício. – Que
queres que ele responda?
–
A verdade não poderá ofender nenhum de nós – retrucou Pólio.
Olhei
para ambos:
–
Creio que escolherei Pólio. Não podendo esperar atingir a elegância literária
de Tito Lívio, farei o possível para imitar a exactidão e o cuidado de Pólio.
Tito
Lívio resmungou e ia retirar-se, mas Pólio, que mal dissimulava a sua alegria,
impediu-o.
–
Vamos, Tito Lívio, não me queiras mal por um novo discípulo, quando tu te4ns
regimentos no mundo inteiro. Meu filho, já ouviste falar da história do velho
de Cádis? Não, não é uma história alegre, chega a ser mesmo muito triste. O
velho de Cádis veio a pé até Roma. Que queria ele ver? Nem os templos, nem os
teatros, nem as estátuas, nem a multidão, nem as lojas, nem o Senado, mas um
homem. Que homem? Aquele que se vê nas moedas? Não, não, mais do que isso. Ele
queria ver Tito Lívio, cujas obras, parece, sabia de cor. Viu-o, cumprimentou-o
e voltou direito para Cádis, onde morreu em seguida. Fora tão longo o caminho e
sobretudo tão grande a desilusão que o pobre velho não os pudera suportar. (…)
In «Eu, Cláudio
Imperador», de Robert Graves (a partir da autobiografia de Tibério Cláudio, com
tradução de Rogério Petinga), Livraria Bertrand, Amadora, Fevereiro de 1979
(1.ª edição).
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