Imagem
encontrada em https://fuelfreemotos.wordpress.com
|
A
nossa linguagem, assim como o nosso passado, procede do funcionamento
aritmético, binário, do nosso cérebro. Nós classificamos em sim, não, positivo,
negativo, estabelecemos as comparações e deduzimos. Se a linguagem nos serve
para ordenar o nosso pensamento por sua vez inteiramente ocupado em organizar,
é necessário verificar que ela não é um elemento criador exterior, um atributo
divino. Ela não vem acrescentar um pensamento ao pensamento. Se eu falo ou
escrevo, refreio a minha máquina. Não a posso descrever senão observando ao ralenti. Portanto apenas exprimo a
minha tomada de consciência binária do mundo, e mesmo assim quando essa
consciência cessa de funcionar à velocidade normal. A minha linguagem é apenas
testemunho do ralenti de uma visão
do mundo também limitada ao binário. Esta insuficiência da linguagem é evidente
e intensamente ressentida. Mas que dizer da insuficiência da própria inteligência
binária? A existência interna, a essência das coisas escapa-lhe. Pode descobrir
que a luz é contínua e descontínua simultaneamente, que a molécula do benzeno
estabelece entre os seus seis átomos relações duplas e no entanto mutuamente
exclusivas; admite-o, mas não o pode compreender, não pode integrar ao seu
próprio movimento a realidade das estruturas profundas que examina. Para o
conseguir ser-lhe-ia necessário mudar de estado, seria preciso que outras
máquinas diferentes das habitualmente usadas começassem a funcionar no cérebro,
e que o raciocínio binário fosse substituído por uma consciência analógica que
revestisse as formas e assimilasse os ritmos inconcebíveis dessas estruturas
profundas. Talvez isso se produza, na intuição científica, na inspiração
poética, no êxtase religioso e noutros casos que ignoramos. O recurso à consciência desperta, quer dizer, a um
estado diferente do estado de vigília lúcida, é o leitmotiv de todas as antigas filosofias. É também o leitmotiv dos maiores físicos e
matemáticos modernos, para quem «qualquer coisa se deve passar na consciência
humana para que ela passe do saber ao conhecimento».
Não
é portanto surpreendente que a linguagem, que não consegue senão testemunhar
uma consciência do mundo em estado de vigília lúcida normal, seja obscura desde
que se trate de exprimir essas estruturas profundas, quer se trate da luz, da
eternidade, do tempo, da energia, da essência do homem, etc. No entanto,
distinguimos duas espécies de obscuridade.
Uma
provém de que a linguagem é o veículo de uma inteligência que se aplica a
examinar essas estruturas sem nunca as poder assimilar. É o veículo de uma
natureza que esbarra em vão com outra natureza. Quando muito, apenas traz o
testemunho de uma impossibilidade, o eco de uma sensação de impotência e de
exílio. A sua obscuridade é real. Trata-se apenas da obscuridade.
A
outra provém do facto que o homem que tenta exprimir-se experimentou, por
instantes, outro estado de consciência. Viveu por um momento na intimidade dessas estruturas profundas. Conheceu-as. É o
místico do tipo São João da Cruz, o sábio iluminado do tipo Einstein ou o poeta
inspirado do tipo William Blake, o matemático arrebatado do tipo Galois, o
filósofo visionário do tipo Meyrink.
Depois
da queda, o «vidente» é incapaz de comunicar. Mas a partir daí, ele exprime a
certeza positiva de que o Universo seria controlável e manejável se o homem
pudesse combinar tão intimamente quanto possível o estado de vigília e o estado
de supervigília. Qualquer coisa de eficaz, o perfil de um instrumento soberano
aparece em tal linguagem. Fulcanelli, ao falar do mistério das Catedrais,
Wiener, ao falar da estrutura do Tempo, são obscuros, mas aqui a obscuridade
não é a obscuridade: ela é o sinal de que qualquer coisa brilha algures.
In «O Despertar dos Mágicos –
Introdução ao Realismo Fantástico», de Louis Pauwels e Jacques Bergier,
tradução de Gina de Freitas, Livraria Bertrand, Lisboa, Março de 1980 (11.ª
edição).
Sem comentários:
Enviar um comentário