Corino de Andrade – foto encontrada em http://alterego12c.blogspot.pt/
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De uma ocasião em que o medo de enfrentar o
Minotauro me levara a procurá-lo, começaria por me intimidar a que retirasse os
óculos escuros, porque deve a verdade ser olhada às claras e sem disfarce. Desafiar-me-ia
depois a que me pusesse a escrever, tarefa a que eu me dedicava, ignorando que
correspondia a uma obrigação a cumprir, brindar-me-ia com muito mais perguntas
do que respostas, e utilizando o intrigante pudor do afecto que o torna
realmente feroz, sem cerimónias, mandar-me-ia verificar se estava a chover lá
fora. Ganhava eu assim o meu segundo pai, aquisição de não escassa monta para
quem como se vê acredita em deuses, em semideuses e em heróis, mas sobretudo na
sua necessidade, a fim de se adquirir o direito de sermos donos daquilo que
somos. E quando me falam hoje do estudo da doença dos pezinhos, sinto-me alumiado
por dentro e contra toda a presença maléfica, destronado que se revela o
espesso terror, ao perceber que é do meu guia que falam, e que defronte do
Minotauro me ensinou ele o atrevimento de falar.
Na idade a que cheguei, não conheço lareira
melhor que a do seu convívio, mais reconciliante cartilha que a da sua
conversa, universidade preferível à da sua cavaqueira, sobre os Jogos Olímpicos
de Berlim e as manias do Egas Moniz, sobre o sentido de uma deixa de Calderón
de la Barca e a explicação de um verso de Ângelo de Lima, sobre a luz em que se
esvaem os poentes de Vila Nova de Milfontes e a receita da suprema confecção do
bacalhau à Batalha Reis. E descubro, nesta espécie de príncipe que se ri dos
principados, neste tipo de mestre que jamais impõe o magistério, o protagonista
ideal das reuniões elogiadas pelo renascente Baltazar Castiglione, as quais nem
constituem conferências anódinas, porque se resumem a um diálogo em que cada um
intervém, e participa do tema, e o interrompe, e o orienta a seu bel-prazer,
nem se cifram em puros diálogos, desde que se considere que, mostrando-se
oportuno que o que aí se diz seja entendido por todos, nada poderá surgir como
estritamente confidencial.
Algumas vezes, passando rente ao jardim do
nosso pedagogo de vencedores do Minotauro, eis que me fascina o carvalho do
Norte esplêndido que nele se radicou. Mas atentando bem, logo me aproprio da
evidente e natural razão de quejando fenómeno. Pois não seria aí a final de
contas que haveria de merecer o privilégio de ter acrescido, e lançado em redor
a sua ramagem, aquela árvore imensíssima, camarada das manhãs, das tardes e das
noites de Corino de Andrade, ou desse que para mim e para muitos sempre foi,
sempre será, outra forma e outro nome da Árvore da Vida?
In «O eixo da bússola»» (crónicas), de Mário Cláudio, Verbo (chancela Babel), Lisboa, 2010.
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