Augusto de Castro em 1968
(Foto do Arquivo Municipal de Lisboa)
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Numa
fase em que reentrou em moda a anotação das características do cidadão
português, e em que a mais saliente delas se afigura a de ser isso mesmo,
português e vivo, e daí diminutivo, como no célebre poema de Carlos Queirós,
valerá talvez a pena reparar numa voz longínqua. Aquele de quem falo, tendo
soçobrado em quase todos os géneros literários a que se dedicou, foi excelente
cronista, redigindo em forma correcta, mas sem demasiadas cautelas, e
proporcionando com frequência uma panorâmica do país que muitos se têm limitado
a revisitar. Não fora a operação de purga que compreensivelmente o vitimizou,
semelhante à que atingiu outros que só agora reemergem, tê-lo-íamos ainda no
nosso convívio, e com direito pelo menos a possuir uma rua com o seu onomástico.
Augusto
de Castro nasceu no Porto em 1883, foi amigo dilecto de António Nobre,
licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, e transitou das hostes da
Primeira República às fileiras do Estado Novo, regime que defenderia
despudoradamente até ao fim dos seus dias. Era daqueles que nos livros que iam
publicando colocavam, bem à vista, e por debaixo do nome, a qualidade de «Sócio
Efectivo da Academia das Ciências», costume que alguns se lamentarão de haver
caído em desuso. Mas como director do Diário
de Notícias, lugar em que parecia haver mumificado ao longo das décadas, é
que iria tornar-se conhecido. Os seus «artigos de fundo», em geral de índole
apologética, faziam dele um dos notórios sustentáculos do salazarismo, e um dos
alvos favoritos do asco da oposição. Talvez por isso dificilmente se encontram
referências à sua pessoa nos vários dicionários de literatura portuguesa, ou
nas mais correntes histórias dela.
O
que nos prende aqui são dois textos, «Virtudes Domésticas» e «O Monstro de Olhos
Verdes», ambos incluídos no volume intitulado Homens e Paisagens que Eu Conheci, vindo à luz em 1941, nos quais
se apontam de modo sibilino, e sem a menor pretensão filosofante, as misérias
que acompanham a grandeza que nos cabe. Começa o nosso homem por aludir àquilo
que denomina «o mal de casa», «caracterizando-se, de um lado, pela estreiteza
de ambições colectivas, do outro lado, por uma espécie de desconfiança endémica
e de dispersão da iniciativa». Menciona então «cinquenta anos de exagero
crítico», «um século de infiltração da frase “pequeno povo”», «um certo lirismo
da modéstia», e duzentos anos do estribilho «somos um país pobre».
Tendo
sublinhado que «o grande desporto nacional é o pim-pam-pum da calúnia e da
intriga com que reciprocamente nos mimoseamos», Augusto de Castro prossegue na
caçada ao «velho monstro de olhos cor de limo, sempre pronto a atacar e sempre
pronto a escapar-se, que se chama a Inveja». Aquilo que nos conta, e que se
cobre quase sempre de uma trágica película de «dejá vu», bastaria só por si para
justificar o aconselhamento do divã do psicanalista, se a receita estivesse
hoje tão em voga como no tempo do signatário dessas crónicas. Escreve ele, «O
pensamento, entre nós, em regra, tem bílis.» E explica, «Daí o nosso pouco
jeito para a sociabilidade, o abuso dos sentimentos depressivos, um mau humor
latente que vai desde a rua até ao livro.» E remata com estas três sentenças, cada
uma das quais merecedora, por si só, de um compêndio de reflexão, «Portugal sofre
de falta de simpatia colectiva. Elogiamo-nos ou atacamo-nos. Raramente nos
conhecemos.»
Não
ignora que na base deste discurso se situa quanto baste de proselitismo do ideário
então vigente, e em doses não despiciendas aquele optimismo quase histérico de
propósitos, animador de inteligências que se propunham reproduzir a genialidade
de Marinetti, ou o colorismo de António Ferro. Mas a verdade é que o objectivo
da análise não lhe rouba o evidente rigor, e o elogio do remédio não retira a
gravidade da doença.
Entronizado
no seu circunspecto gabinete do Diário de
Notícias, feliz por se deparar nas novas instalações da Avenida da Liberdade,
metido num «fato à moda, de corte inglês», e com «uma gardénia no casaco», Augusto
de Castro observa, e descreve o que somos. E o que somos não abdica das borras
de uma mentalidade que regime nenhum, bom ou mau, ou mesmo assim-assim, se
mostrou capaz de despejar sem sequer dizer «água vai!»
In «O eixo da
bússola»» (crónicas), de Mário Cláudio, Verbo (chancela Babel), Lisboa, 2010.
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