«O Enterro da Sardinha», composição de Goya –
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Há um bom par de décadas, ao falar a um
jornal, um dos nossos mais intelectuais poetas verberava o gosto que os
leitores portugueses manifestavam por aquilo a que, recorrendo a um símbolo,
chamava a «sardinha assada». Sendo tão fácil esquecer em geral o que os vates
vão dizendo, a observação do referido permaneceria curiosamente na minha
memória. Pretendia ele significar com a mordacidade do seu reparo aquilo que
não corresponde a mais do que a pura expressão da lei do menor esforço, e que
por isso não constitui fenómeno exclusivamente nosso, a atenção pelo simples,
às vezes pelo medíocre, e na maioria dos casos pelo recreativo. Ao fazê-lo,
deixava porém ficar pairando a impressão, afinal desfavorável a quem aspire a
pensar civilizadamente, de que a frequência de Fernando Pessoa por exemplo se
torna incompatível com a de Florbela Espanca, ou de que a recepção de Hans Werner
Henze por hipótese se revela inassociável à de Astor Piazzola.
Voltando à sardinha, sempre me incomodou o
regabofe pós-revolucionário que leva à mesa dos restaurantes massas oprimidas
de devoradores de marisco, mais preocupados em ocupar o tempo do que o espaço,
e a consequente vergonha que experimentam em tais fases os degustadores fiéis
do peixinho que se vende ao quarteirão, e que cheira iniludivelmente a pobreza.
Os novos-ricos da cultura, guindados à epidérmica cidadania que postula a avó
que se deseja esconder, de lenço na cabeça, e o avô que é necessário rasurar,
de ancas de cavador, desenha um dos traços, esse sim, mais salientes da nossa
mentalidade de recém-chegados ao suburbanismo. Detectá-lo com nitidez, e até
mesmo no discurso dos poetas muito intelectuais, equivale a técnica que
aproveitará a quem se dispõe a reflectir sobre esta ordem de coisas.
A entrada do solstício, originante de culto
mais afoito dos pequenos prazeres, traz ao nosso convívio a sardinha assada,
clássica iguaria das eternas festividades populares, ou das efémeras
comemorações futebolísticas. É útil que os que amiúde se envergonham de a
mastigar conscienciosamente, ou que a reputam de lusa pelintrice, a observem
agora com olhos de ver. Eu refiro-me, é claro, à espécie atlântica, e não a
essa futrica modalidade, sensaborona e sem escamas, representada pela que
aparece na bacia do Mediterrâneo. A velha sardinha conta de resto a seu favor,
e hoje em dia, com o nihil obstat da
comunidade médica, proverbialmente lábil em matéria de aconselhamento, mas
cujos ditames importa seguir à risca.
Não gosto de sardinha congelada, equiparável à
pop-fiction reles, nem de poetas
demasiado intelectuais, idênticos ao autor da desastrosa generalização. Mas não
me parece mal exigir o produto de qualidade, seja ele caro ou barato, ilustre
ou plebeu, referendado pelo escol das academias, ou por um público
saudavelmente vasto. Aos que farejarem tal vastidão com alarme, ou com a reticência
bem-pensante dos vagos comedores de antenas de lagosta, só posso fazer votos de
um Verão sem santos, sem futebol, e sem sardinha, o que me parece tristonha
maneira de andar a gastar a existência por este canto da Europa. Fique claro no
entanto que admito a legitimidade de outras rejubilantes opções, a maledicência
atávica, a tribal competição, ou a vergonha de sermos aquilo que somos. Não as
julgo todavia comparáveis, isto em termos de artigo que consubstancie a alegria
colectiva, àquilo que a sardinha assada prefigura como metáfora.
Em 1818 pintou Goya O Enterro da Sardinha, uma sinistra e fantasmagórica cerimónia,
comandada por duas megeras mascaradas, patrocinadas por um demónio que possui
algo de inquisidor. De certa maneira anunciando a morte da grande festa, a
alegoria serve a época em que a sardinha da nossa costa acaba sob a enxurrada
da fast-food. Valer-nos-á então a
paráfrase dos célebres versos de William Carlos Williams, afeiçoados assim,
«Temos no nosso prato a espinha da sardinha. / Eis o que dá ao homem
segurança!»
In «O eixo da bússola»» (crónicas), de Mário Cláudio, Verbo (chancela Babel),
Lisboa, 2010.
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