Miguel Veiga, querido amigo, perdeu
recentemente o seu cão Timmy, com quem o meu Jasão mantinha alguma
correspondência de afectos. Quem quer que menorize os sentimentos que nisto se
envolvem, ou os torne objecto de desprezo, merece a mais fria das indiferenças
com que se devem tratar os analfabetos da natureza humana. Não tenho a menor
simpatia pelas religiões da fraternidade inextensível aos bichos, nem pelos
teólogos que transformam o lobo de Gúbio, ou o canídeo que costuma acompanhar
São Roque, num adereço metafórico da iconografia da flos sanctorum.
Chegou-me a notícia da morte de Timmy
imediatamente a seguir à visita que fiz à exposição de Velázquez, patente na
National Gallery em Londres. Às várias razões que recomendam a mostra a quem
puder ir até lá, e que justificam as horas passadas na fila dos que pretendem
entrar, haverá que acrescer a de ser Diego Velázquez, ele também, amante desses
solitários partícipes dos dias que nos vão cabendo. A consciência com que o
pintor se debruça sobre tais criaturas, vendo nelas, mais do que a figura
decorativa, o verdadeiro espelho em que se reflecte muito daquilo que somos,
converte o percurso das quarenta e seis obras-primas numa empresa de
auto-reconhecimento, e não numa pura lição que é o que menos importa buscar na
frequência de qualquer artista.
Os cães de Velázquez respeitam a
estratificação social, e jogam com ela como com uma entidade inamovível.
Reaccionários como são, e por isso adversos a medidas de legalização do aborto,
acolhem valores certos, preferindo à conveniência política o conforto das
relações, e optando pela liberdade de amar como, quando e onde lhes apetece,
independentemente dos ditames de qualquer catecismo. São mais proveitosos em
suma como exemplo comportamental do que os que no seu afã de reequilibrar o Mundo
não tardarão a impor o interdito do presépio público, ao qual de resto os animais
alegremente concorrem, vendo na cena do nascimento de Jesus Cristo um ameaçador
símbolo religioso.
O rafeirito que defende o patriarca Jacob, ao
tomar conhecimento do destino de José, seu filho, porventura devorado pelos
brutos do deserto, executa afinal a manobra da preservação da dor a que todos
nós temos direito, e que não se compadece com ritos ornamentais. É um indivíduo
débil, mas tão devotado à guarda da fragilidade de um velho, que não há
gladiador de Roma que arroste com a sua fúria.
Osa galgos e os perdigueiros, pacientemente
aguardando, abrigados pelas sombras da Torre de la Parada, a sua vez de
ingressar na montaria ao javali, manifestam a negligência dos grandes áulicos,
sempre prontos a receber ordens, e a delas se desempenhar com uma descrição que
é nota de respeito, e nunca de desdém. Já o sabujo que se senta à beira de
Filipe IV, ascendido a uma dimensão donde apenas o fim terreno o desalojará,
cobra a serenidade que o dispensa de efectivas funções, excepto a de posar
assim para o retrato de Diego Rodríguez de Silva Velázquez, meio na penumbra,
constantemente presente.
Os infantes pequenos beneficiam de uma escolta
que, consagrando o império da infância, a encara como uma invulnerabilidade à
inteligência dos clássicos irracionais. Baltasar Carlos, incapaz ainda de
manobrar a carabina com que o retratista o armou, consente em que a seus pés
adormeça um molosso enorme, isto por se encontrar ciente dos impenetráveis
sonhos em que são cúmplices. E o mínimo Filipe Próspero, tão pelém que no rosto
se lhe adivinha a letal gadanha que anda a rondá-lo, só com o maltês
caprichoso, habituado à altura dos cadeirões, aceita dividir os seus choros e
as suas birras.
Os cães de Velázquez celebram uma
interioridade preciosa, mais afeita às caseiras noites de Inverno que que às
tardes de domingo dos centros comerciais. Desaparecidos todos, tendo ascendido
a um plano tão incontável como indiscutível, partilham com o saudoso Timmy essa
sabedoria dourada a que em exclusivo acedem os que em definitivo entenderam já
aquilo que equivale a ser. E até isso lhes agradecemos, até isso lhes
invejamos.
In «O eixo da bússola»» (crónicas), de Mário Cláudio, Verbo (chancela Babel),
Lisboa, 2010.
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