Foto encontrada em http://www.historiadeportugal.info/
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Mas começaram os encontros com literatos, única espécie animal com que tenho mantido relações – e ainda bem! – na capital lusitana.
Cumprimentos; paragem, aproximação de camaradas
desconhecidos, e logo uma discussão longa e assanhada… Por via de regra o
literato português discute sempre zangado, e é profissionalmente irónico.
Espreme as ironias com uns cascalhados risos, à mistura, que se coalham
perfeitamente. E como o literato terrestre, é maledicente. Vinha à balha a vida
dos colegas ausentes, num estendal de crónica libertina, esforçando-se cada
qual por provar, no que respeita a si próprio, que é pessoa decente, confessada
e comungada.
Esses encontros levaram, naturalmente, pela boca da noite, à
visita aos cafés, onde estacionavam alguns musagetas de maior nomeada.
Apresentações, cumprimentos, perlengas…
«Mal iria a quem trova se lhe tomassem todos os versos por
História» - diz o Castilho no seu ensaio sobre Anacreonte.
Nas feições, ou nas expressões, dos nossos escritores de
agora, em prosa ou verso, pouco se lhes pode descobrir que seja reflexo
verdadeiro de seus sentimentos reais, ou dos lances de suas verídicas vidas.
Compõem-se e disfarçam muito.
Enquanto literatos da geração de Camilo levavam uma
existência desregrada, apregoando ao mesmo tempo os sãos princípios da moral
cristã, os da presente geração – a de 1880 – pregando máximas subversivas de
toda a organização social, praticam vida de exemplares pais de famílias, e
disciplinam-se muito voluntariamente, nas fileiras da burocracia.
Mas tais contrastes sempre se deram em gerações
subsequentes, e observam-se mesmo em tempos muito remotos, de anoitecida
memória…
No cenáculo de que me aproximei, dera-se começo à habitual
tarefa de insuflar espírito novo, e conveniente, aos diversos ramos da Arte;
todos entrançaram, de improviso, um pensamento inédito na grinalda da
renascença intelectual; e entre libações de aguardente de cana, ali se decidiu
categoricamente do futuro das letras pátrias e… universais.
Um dos musagetas, cujo nome eu reputava respeitável, mas que
não recebera dos meus companheiros atenção suficiente, separou-se do grupo, e
foi tomar assento numa banca próxima, de onde nos ficou olhando entre arrogante
e desdenhoso.
Inquiri, ingenuamente, da sua capacidade artística e
intelectual, e logo outro musageta sentenciou: «Pretenso filósofo: é um
espírito de pouquíssima superfície e profundidade nula…»
Sentia-me fatigado e sonolento. Sobre o conceito, a que
aplaudi, fiz as minhas despedidas, já resolvido a evitar novos encontros
literários, e adiando a leccionação prática, destinada ao velho poeta, decidi
ir espairecer ao dia seguinte para Sintra.
In «Regressos», de
Manuel Teixeira-Gomes (com prefácio de Urbano Tavares Rodrigues; e notas de
Urbano Tavares Rodrigues, Helena Carvalhão Buescu e Vítor Wladimiro Ferreira),
colecção «Obras Completas de M. Teixeira-Gomes», Bertrand Editora, Venda Nova,
Dezembro de 1991 (4.ª edição – patrocinada pelo Instituto Português do Livro e
da Leitura).
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