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Estou a escrever, sentado à lareira de Novembro na minha casa de fins-de-semana, construída num antigo pedregal de cardos e carrasqueiras onde, à custa do suor físico dos outros, sempre tão avidamente explorado pelos meus êxtases humanísticos, plantei algumas dezenas de cedros e pinheiros – estes agora cortados à socapa, para veniagas ou festarolas de peru, por irresponsáveis que nunca conseguiram olhar religiosamente para uma árvore. Rito que, devo confessar, só aprendi aí pelos anos 30, quando conheci um velho fidalgo que, certa tarde, para me provar a simpatia que sentia por mim, me convidou a acompanhá-lo a um parque que, no século XIX, pertencera ao palácio onde nascera e agora estava transformado numa feira de barracas de divertimentos populares.
–
Venha daí comigo. Quero mostra-lhe uma coisa.
Segui-o
até ao portal do Parque de Diversões, obrigou-me a entrar e, em dado momento,
vi-o estacar diante de uma árvore densa de verde perfeito.
–
Fui eu que a plantei em criança – disse-me, desvanecido, como se contemplasse o
autêntico brasão da sua casa (era um jardineiro amador que cultivava rosas em
segredo num jardim clandestino de paixões secretas onde, quando cheirava as
flores, sentia bocas de mulheres a desfazerem-se em manhãs húmidas). – Tem
mais de setenta anos – comentou ainda.
Não
respondi, comovido com aquele amor de um homem por uma mulher vegetal que
parecia entendê-lo, feliz, e bem diferente dos cepos de um muro próximo com
dois ou três ramos secos, à espera de enforcados, ou das árvores de Raul
Brandão que trepam pelas paredes dos hospitais para se alimentarem de dor,
gritos e esgares doridos.
–
É uma maravilha! – murmurava de vez em quando o meu companheiro amolecido pela
frescura da árvore magnífica. O que, aliás, abria o apetite ao maldito diabinho
torpe que nunca me larga, para me incitar a pregar-lhe um pontapé valente no
tronco. – E pensar eu – continuava o fidalgo, agora indignado – que a maioria
dos homens passa indiferente diante das árvores como se fossem meros objectos
de plástico, fabricados às séries para enfeitar as avenidas. E não seres vivos,
tão extraordinários que nem sequer sujam. Já reparou, não é verdade? Não
estercam como todos os outros seres viventes deste mundo a que nunca faltam
tripas e entranhas porcas. Os dejectos das plantas são as flores secas. As
folhas que douram os caminhos do Outono… As pétalas em que a morte ainda é
perfume nas rosas desfolhadas…
Assim
falava o meu velho amador de ervas e jardins (ou estarei eu a inventar estas
reflexões?) diante daquela árvore sagrada que ia mostrar sempre, em cerimonial
de rito, aos amigos que admitia no seu templo. E eu concordava, enternecido.
Concordava,
claro, embora com a comédia cínica do costume. Porque, neste mesmo instante,
não hesito em lançar na lareira uma acha de árvore que vi abater, indiferente,
não faz um ano. E ei-la ali agora desfeita, a dar as últimas flores e folhas em
forma de chamas. Folhas, flores e frutos que me aquecem as mãos e, sobretudo,
os pés – porque nesta posição de pernas alongadas, convenço-me mais facilmente
de que estou a pensar. Não penso em nada, está bem de ver. Finjo apenas neste
entremeio entre a fadiga e o sono que tanto se assemelha exteriormente à
meditação de problemas profundos.
Em
boa verdade, reparo pela primeira vez com olhos atentos nas raízes que ardem.
Principalmente na maior, com cabeça de dragão a golfar labaredas da boca, dos
olhos, das orelhas. Um autêntico monstro que o entreouvir do ranger do vento no
cedral torna mais sinistro.
Então,
semiadormecido, escalda-me o pavor de que o esfervelho daquele bicho, que
parece filho da tarântula e caranguejo, o convença a saltar-me ao pescoço para me sugar os gorgomilos.
Ao
lado, outra raiz, movida pelo lume, parece uma aranha de patas molengonas,
disposta a sustentar um combate singular com um monstro de lança em riste,
criado por um satanás louco qualquer.
Sempre
considerei as raízes misteriosas – principalmente, quando nestas horas de
fadiga nocturna, lanço uma olhadela para as que juntei num cesto de Miranda do
Corvo onde se amontoa a lenha.
Sim
deixem-me empregar a palavra «mistério» que me parece a única possível para,
embora não explicando coisa alguma, amortecer o meu pasmo de saber que ali,
naqueles invólucros negros, se concentraram durante anos e anos de Primaveras e
Outonos o verde e o ouro das folhas, as cores várias das flores, o veludo da
pele dos frutos.
Meio
sonolento tiro do cesto um polvo terroso e deponho-o com terror disfarçado (é
preciso que a família não perceba) naquele inferno miniatural que afinal – ai
de mim! – nestas noites de Novembro (neste maldito Novembro do Termidor) me
aquecem mais do que o céu. Pouco a pouco os olhos cerram-se-me com o calor. Mas
reajo. Não, não quero dormir. Abro-os com denodo, a ouvir magoado o crepitar
das raízes-bichos… Estamos no fim da Revolução… E porventura não tardará aí o
inferno que ninguém quer.
Mas
o sono não desiste… E no negrume dos tijolos refractários da chaminé em frente,
vejo desenhar-se de súbito, com o giz de me sentir adormecer, uma raiz
quadrada, uma horrenda raiz quadrada que em criança, na escola, nunca consegui
resolver. Nem agora, na velhice. Nem nunca!
Adormeço
lentamente – com o coração sempre acordado, desejoso do futuro acordado para
toda a gente que, medrosamente, já ninguém espera. Ninguém…
Entrámos
na era dos pequenos sonhos medíocres para gente de imaginação pobre.
In «Revolução Necessária /
Intervenção Sonâmbula», colectânea de crónicas de José Gomes Ferreira, Obras de
José Gomes Ferreira, Círculo de Leitores (licença editorial por cortesia de
Publicações Dom Quixote), Lisboa, Setembro de 2004.
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