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«Todas as coisas se trocam pelo fogo e o fogo troca-se por todas; como o ouro se troca pelas mercadorias e as mercadorias pelo ouro», lembrava-se ele de ter lido nos escritos do sábio. Confundida, assim, a morte com a vida, ele matava como o agricultor semeia. Roubava ouro, deixava-lhes o fogo. Como todas as más cópias, destruía com instrumentos que o sábio utilizara para construir.
Romeu da Baviera, o homem que se procurava a si mesmo,
ambicioso; pretendente a sábio; seguidor de Heraclito, tornou-se conhecido como
o duque do Fogo; o homem que queima até o que já não consegue fugir. Conquistou
tantas cidades como ódios. Matou tantos homens quantos os que deixou com
vontade de o matar.
Um dia, porém, o mundo mudou: o homem que desce o caminho
fácil deve também aprender o difícil, porque num qualquer momento, é certo,
precisará dele. Romeu da Baviera não crescera nessa sabedoria capaz de sair do
presente: havia gasto já todas as alegrias. Agora era o momento de recordar as
palavras do Evangelho de São Mateus (24.7): «Haverá fome e terramotos em vários
lugares.
Mas tudo isto é apenas o começo das dores.» Para Romeu
começara, então, o tempo das dores.
Atacado pelo exército do imperador Conrado III, rapidamente
perdeu terreno e homens.
O resto, em parte, é conhecido. Conta-o Montaigne num dos
seus ensaios. Movido pelo ódio, embora inda não totalmente dominado por ele, o
imperador Conrado III, entrando na cidade de Baviera, consentiu em deixar fugir
as mulheres. Apenas.
Que elas saíssem da cidade a pé, foi a sua imposição; e que
levassem só o que pudessem carregar com os braços. Tudo o que ficasse para trás
seria arrasado pelo fogo (essa a sua vingança): incluindo os homens; incluindo
Romeu.
A parte que conta Montaigne comove: as mulheres, com a força
que só o coração e o desespero conseguem, pegaram em filhos e maridos e
carregaram-nos às costas, livrando-os da morte.
Montaigne esqueceu-se (não terá visto): quando Romeu, o
cruel duque da Baviera, se viu deixado para trás, abandonado por todas as
mulheres que ao longo da vida abandonara, teve um instante em que de tudo se
arrependeu como acontece a todos os que se vêem frente à morte. De imediato, no
entanto, foi surpreendido pela terra, pelas mulheres. Uma mão feminina com
rugas: era Julieta. Como nele, trinta anos nela haviam passado. Era agora
velha, curvada, fraca. No entanto, carregou-o às costas. Corajosa. Ainda
Apaixonada.
Montaigne fala de um perdão por parte do imperador,
impressionado com a exibição de força e coração das mulheres da Baviera.
Sabemos, porém, que não foi bem assim. Deixou fugir todos os
homens que as suas mulheres carregaram aos ombros, é verdade, excepto Romeu.
Julieta também ficou.
O imperador não era falador, era guerreiro, mas disse:
– Só se pode odiar a mulher que ama o inimigo.
Juntou, assim, os dois, no centro da cidade, amarrados por
cordas um ao outro.
Ele próprio, o imperador Conrado III, acendeu o fogo. Dizem
que com a mão esquerda, a mão que odeia.
O fim da história é evidente; não era já tempo dos milagres:
Romeu e Julieta da Baviera morreram.
In «Histórias
Falsas» (breves narrativas; desvios ficcionais na história da filosofia
antiga), de Gonçalo M. Tavares, Editorial Caminho, SA (uma editora do grupo Leya),
Alfragide, 2014 (7.ª edição).
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