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quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Excerto de «A história de Julieta, a Santa da Baviera», de Gonçalo M. Tavares

Foto encontrada em http://veja.abril.com.br

«Todas as coisas se trocam pelo fogo e o fogo troca-se por todas; como o ouro se troca pelas mercadorias e as mercadorias pelo ouro», lembrava-se ele de ter lido nos escritos do sábio. Confundida, assim, a morte com a vida, ele matava como o agricultor semeia. Roubava ouro, deixava-lhes o fogo. Como todas as más cópias, destruía com instrumentos que o sábio utilizara para construir.
Romeu da Baviera, o homem que se procurava a si mesmo, ambicioso; pretendente a sábio; seguidor de Heraclito, tornou-se conhecido como o duque do Fogo; o homem que queima até o que já não consegue fugir. Conquistou tantas cidades como ódios. Matou tantos homens quantos os que deixou com vontade de o matar.
Um dia, porém, o mundo mudou: o homem que desce o caminho fácil deve também aprender o difícil, porque num qualquer momento, é certo, precisará dele. Romeu da Baviera não crescera nessa sabedoria capaz de sair do presente: havia gasto já todas as alegrias. Agora era o momento de recordar as palavras do Evangelho de São Mateus (24.7): «Haverá fome e terramotos em vários lugares.
Mas tudo isto é apenas o começo das dores.» Para Romeu começara, então, o tempo das dores.
Atacado pelo exército do imperador Conrado III, rapidamente perdeu terreno e homens.
O resto, em parte, é conhecido. Conta-o Montaigne num dos seus ensaios. Movido pelo ódio, embora inda não totalmente dominado por ele, o imperador Conrado III, entrando na cidade de Baviera, consentiu em deixar fugir as mulheres. Apenas.
Que elas saíssem da cidade a pé, foi a sua imposição; e que levassem só o que pudessem carregar com os braços. Tudo o que ficasse para trás seria arrasado pelo fogo (essa a sua vingança): incluindo os homens; incluindo Romeu.
A parte que conta Montaigne comove: as mulheres, com a força que só o coração e o desespero conseguem, pegaram em filhos e maridos e carregaram-nos às costas, livrando-os da morte.
Montaigne esqueceu-se (não terá visto): quando Romeu, o cruel duque da Baviera, se viu deixado para trás, abandonado por todas as mulheres que ao longo da vida abandonara, teve um instante em que de tudo se arrependeu como acontece a todos os que se vêem frente à morte. De imediato, no entanto, foi surpreendido pela terra, pelas mulheres. Uma mão feminina com rugas: era Julieta. Como nele, trinta anos nela haviam passado. Era agora velha, curvada, fraca. No entanto, carregou-o às costas. Corajosa. Ainda Apaixonada.
Montaigne fala de um perdão por parte do imperador, impressionado com a exibição de força e coração das mulheres da Baviera.
Sabemos, porém, que não foi bem assim. Deixou fugir todos os homens que as suas mulheres carregaram aos ombros, é verdade, excepto Romeu.
Julieta também ficou.
O imperador não era falador, era guerreiro, mas disse:
– Só se pode odiar a mulher que ama o inimigo.
Juntou, assim, os dois, no centro da cidade, amarrados por cordas um ao outro.
Ele próprio, o imperador Conrado III, acendeu o fogo. Dizem que com a mão esquerda, a mão que odeia.
O fim da história é evidente; não era já tempo dos milagres: Romeu e Julieta da Baviera morreram.

In «Histórias Falsas» (breves narrativas; desvios ficcionais na história da filosofia antiga), de Gonçalo M. Tavares, Editorial Caminho, SA (uma editora do grupo Leya), Alfragide, 2014 (7.ª edição).

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