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(…) nada do humano é
alheio à literatura. O homem individual e o homem social, o homem moral e o
homem metafísico, o homem religioso e o homem político, o homem da razão e o
homem obscuro, o homem animal e o homem angélico – todos os homens, revelados ou a revelar, são
objecto da literatura. Assim, de certo ponto de vista, é a literatura a mais impura das artes, aquela em que mais se
intrometem todos os interesses do homem; o que não impede que uma obra de arte
literária possa ser encarada do seu mero ponto de vista específico, – o
estético. Por tudo isto exige a literatura um grande à-vontade de movimentos.
Todas as janelas abertas, todas as portas francas, e a cada artista a liberdade
de abrir novas janelas, portas, postigos! Eis o que desde a extrema juventude
sempre tenho defendido, exigindo para mim próprio e para os outros uma
independência que evidentemente desagrada a todos os partidos. Claro que certas
épocas preferem o homem-indivíduo e outras o homem social; certas o homem
religioso e outras o homem dos sentidos; etc., etc. Depende isto das épocas – é
coisa do tempo – e até as preferências dependentes das épocas se podem ainda
corromper em modas. Livre seja o
artista de obedecer às tendências da sua época, se por determinação da sua
própria natureza o faz. Livre seja de alegremente lhes desobedecer, se a sua
natureza sobretudo o atrai a outros aspectos e regiões do humano. Ao fim e ao
cabo, alguma vez poderá estar fora do seu tempo, onde sempre coexistem muito
diversas tendências? O erro está em se pretender impor assuntos, posições, até
estilos, até maneirismos epocais, onde, em razão da fundamental espontaneidade
da arte, só a insubmissão do artista pode imperar. Submisso, não tanto o é ele
às resoluções conscientes da sua vontade clara como, principalmente, às solicitações
obscuras da sua mais funda intimidade. Pelo caminho desta subjectividade se
aproxima ele da objectividade da obra de arte – da sua universalidade e da sua
intemporalidade. Pois como toda a obra de pensamento, como toda a obra de
ciência, ou transcende a obra de arte as limitações do seu lugar e tempo (o que
não quer dizer que não possa manter com eles estreitas relações) ou fica
reduzida a mero documento histórico.
In «Introdução a uma Obra», posfácio de José
Régio ao seu livro «Poemas de Deus e do Diabo» (com oito desenhos do Autor),
Obras Completas de José Régio, Brasília Editora, Porto, Julho de 1972 (8.ª
edição).
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