José Régio – foto encontrada em http://macroscopio.blogspot.pt |
Se alguma coisa, desde o seu primeiro livro de versos,
singulariza a poesia do autor em questão, é pois a inclinação prosaica para a análise, o pensamento, a
observação desapaixonada, a ironia crítica, o desdobramento do novelista,
coexistindo com muito diversas inclinações. De envolta com os versos delirantes
ou oratórios, – saídos, os primeiros,
a verdadeira alta tensão; gerados, os segundos, mais numa embriaguez do
momento, ou no abandono ao verbalismo, que no fervor da alma – um, outro e
outro aparecem que, se me permitem a vulgaridade da imagem, são baldes de água
fria…
Foi talvez o que em parte sentiram, embora nem sempre
nitidamente, várias pessoas que a poesia do nosso autor começou por chocar. De
muito boa fé o aconselharam, então, a escrever prosa, «pois não era poeta».
Ainda hoje o não têm por poeta alguns experimentalistas para quem parece
consistir a poesia nos seus, deles, jogos e experiências verbais.
Já se vê que lhes não recuso toda a razão. Mas, por outro
lado, não só vários caracteres dos mais tidos por poéticos transpareciam nos
versos do autor, como – agora o confessarei – hesito eu ainda sobre os limites
substanciais entre poesia e prosa. Convincente distinção entre poesia e prosa,
(se a há substancial, isto é: não redutível a modalidades formais) só por um
longo estudo comparativo e minucioso, tão diligente como delicado, tão
desinteressado de quaisquer preconceitos ou convenções como filosoficamente
interessado na aproximação da realidade, – poderá ser estabelecida. Mais não
consegue, aliás, toda a evolução da poesia moderna que dificultar essa
distinção. Talvez os seguintes pequenos factos ajudem a ver o que nela há de
hesitante e vago: Certas das mesmas pessoas que, de princípio, aconselharam o autor
a «deixar-se de versos» - o aconselhavam, depois, a não trocar a poesia pela
prosa, pois «poeta é que ele era». Mas não só, quando principiou a publicar
versos, acharam alguns ser-lhe preferível tentar a prosa, (de prosador é que
eram as suas principais características) e, tendo principiado a publicar livros
de prosa, lhe declararam que «poeta é que ela era», (os seus livros de prosa
não valiam os de versos) como ainda outras curiosas experiências idênticas se
lhe proporcionaram. Assim é que, arriscando-se a alguns pequenos ensaios de
crítica, muitos lhe aconselharam que se não dispersasse com tal; pois o que
era, era criador. Mas os que mediocremente apreciavam os seus livros de criação
– com sincero júbilo lhe fizeram sentir que estava no bom caminho: O que ele
era, era um crítico; e à crítica se deveria consagrar. Tendo-se abandonado à
fantasia no Jacob e o Anjo ou nO Princípe com Orelhas de Burro, vários
se recusaram a conceder àquele foros de teatro, ou a este foros de romance, (em
Portugal, quase toda a gente sabe muitíssimo bem o que é o romance ou teatro)
precisamente porque se desenvolviam nesse
ar de fantasia e licença poéticas. Evidenciando, porém, nas Histórias de Mulheres ou nA Velha Casa disposições realistas que
também lhe são naturais, e que até naquelas criações fantasistas eram visíveis,
(além dum estilo consequente com tais disposições) quase violentamente se viu
empurrado o confuso autor para as aventuras do capricho poético, «onde era o
seu verdadeiro lugar».
A coisa foi mais longe, desceu a minudências:
Apreciadores a quem está muito grato aplaudiram os seus sonetos e oitavas, ou
propalavam como excelente metade das suas opiniões. Em compensação, repeliam as
suas composições soltas, (como se nestas se manifestara um espírito poético
inteiramente oposto) e achavam doutrina péssima as suas opiniões da metade
restante. Pelo contrário, a outros pareciam «de almanaque» grande maioria dos
seus sonetos, e (expressão textual dum colega) um «pastelão» as suas oitavas da
Sarça Ardente. Nem por isso deixavam
de amavelmente se mostrarem inclinados a favor doutras produções do infeliz
autor dessas. Só lamentavam que, mesmo então, não fosse ele mais adiante, – e
não chegasse a parecer-se com o Fernando Pessoa. Prefeririam outros que se parecesse
com o Pascoaes. Paralelamente, houve depois os que, para aceitarem a
licenciosidade verbal de Jacob e o Anjo,
forçosamente haviam de condenar a disciplina e concisão de Benilde; ou vice-versa; e os que não reconheceriam direitos de
existência a El-Rei Sebastião sem os recusarem
a seus parentes das peças anteriores; ou, para terem por humana a heroína de O Vestido Cor de Fogo, negavam toda a
humanidade à pobre Maria do Ahú…
Eis-nos perante a verdadeira fábula de O Velho, o Rapaz e o Burro. Como
aguentar-se o nosso autor neste embate ou rodopio de opiniões? A sua
perplexidade era tanto mais grave, porquanto provinham várias delas não de
leitores quaisquer, antes de críticos tidos por bons. Já se prevê que seguiu a
filosofia do Velho. Assim decidiu nunca deixar de exprimir o quer que nele
pedisse expressão, – e da forma como a pedisse. Reconhecendo-se um complexo de
tendências, por que mutilar, ao gosto dos outros, o seu complexo? Não é a
literatura a expressão mais livre, mais variada, mais completa, que de si dá o
homem? Jovens artistas que me ledes, e a quem já recusei conselhos! Deixai que
me contradiga: Não façais caso de críticos e suas críticas (a não ser que sejam
compreensivos, ou simplesmente para os conhecerdes) quando vos reconheçais no vosso caminho próprio.
Sem comentários:
Enviar um comentário