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Lisboa, Março de 1952
A abundância de poetas e de poesia, e – diga-se desde já –
de um modo geral boa poesia, leva-nos a reflectir: onde se ocultará afinal a
crise poética que todos nós sentimos existir? De que provirá esta sensação de
desencanto, de cansaço, de desvitalização que, ano a ano, mês a mês,
alarmadamente verificamos insinuar-se nos nossos juízos, minar as nossas
preferências, e acabar por instalar-se na nossa apreciação do fenómeno poético
português? Uma coisa é certa: existe de facto um fosso aberto entre o poeta e o
leitor, entre a poesia e o público, fosso que os anos vão alargando mais e
mais. Os livros saem, passam e esquecem, sem que ninguém se dê conta, nem a
massa de leitores anónimos que devia constituir o fundo permanente de
consumidores poéticos nem já quase sequer os círculos restritos dedicados às
coisas da arte. E o poeta, ao publicar o seu livro, sente que o atira para o
fundo de uma gaveta.
Ora nestas circunstâncias toda a vida poética – ou literária,
ou genericamente artística – se torna fictícia. Sem jornais e sem revistas
literárias que agitem e esclareçam as questões estéticas, sem leitores, como
há-de a poesia sobreviver como fenómeno vital da vida cultural e mesmo social
do país? Como hão-de o autor e o leitor estabelecer entre si o necessário
diálogo, se regra geral falam línguas diferentes? E estamos chegados ao âmago
da questão: poetas e público não acertam o passo, afastam-se e perdem-se por
caminhos divergentes, na ausência de uma teia exterior e interior de
acontecimentos e relações que os aproximem e os sincronizem. O público não se
encontra preparado para a recepção poética; e o poeta, isolado, sem estímulos,
sabendo que a sua arte não corresponde a uma necessidade autêntica, mas
funciona muitas vezes apenas como um sucedâneo do panfleto ou da própria acção,
não encontra, mau grado as suas porventura grandes qualidade de artista, a
matéria e o tom adequados ao que de novo e estimulante teria de a exprimir. Há
todavia aqui um aspecto em que gostaria de insistir. Apertado neste círculo
vicioso, o poeta retrai-se, no pudor dos próprios pensamentos e das próprias
emoções, aplicando-se a burilar a forma que a pouco e pouco deixará de ser para
ele um elemento funcional, e pranteia uma nostalgia da comunhão humana que lhe
falha através do contacto procurado com a sua arte e que, por mais verídica e
pungente que realmente seja, nos seus versos aparece mais como vontade, como deliberação, ou quando muito como ideal frustrado. Pois bem: a crise da poesia portuguesa
contemporânea, ou melhor, da parte mais viva e que na verdade interessa desta
poesia, porque da outra não tenho que me ocupar, parece-me residir precisamente
nisto: na sua falta de convicção, de confiança em si própria e no homem que
serve. De nada lhe valerá fingir ignorar essa debilidade e procurar uma solução
no decalque ou na inspiração de poesias estrangeiras mais afortunadas, a
francesa sobretudo, que teve na Resistência um poderoso elixir de
rejuvenescimento; quer queiramos quer não, é aqui em Portugal, e pelos seus
próprios meios, que o problema da poesia portuguesa tem que ser resolvido. De
nada lhe valerá tampouco tergiversar, fingir-se desinteressada e refugiar-se
na, tantas vezes admirável, procura formal ou rebusca interior. O círculo
vicioso mantém-se e aperta-se até, e a nostalgia de que atrás falava surge nela
como o traço psicológico mais vincado: a nostalgia do homem verdadeiramente
humano pressentido, mas carecendo de força ou de possibilidades para ajudar a alcançá-lo.
O poeta, apesar de tudo, não renuncia nem se dá por vencido, e mesmo
desajudado, mesmo sozinho, teima heroicamente em erguer um canto paradoxalmente
tímido. (…)
In «Opiniões
com Data», João José Cochofel, Obras Completas [de] João José Cochofel,
Editorial Caminho, Lisboa, Outubro de 1990.
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