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«A marquesa tomou o seu chá às cinco horas»: Valéry dizia mais ou menos que não se pode escrever semelhantes coisas quando já se entrou no mundo das ideias, mil vezes mais importante, romanesco, mil vezes mais real do que o mundo do amor e dos sentidos. «António amava Maria que amava Paulo; eles foram muito infelizes e tiveram uma série de questiúnculas». Uma literatura inteira! Palpitações de amibas e de infusórios, quando o Pensamento arrasta tragédias e dramas gigantescos, transmuda seres, altera civilizações, mobiliza multidões imensas. Sonolentos prazeres, deleitação burguesa! Nós, os adeptos da consciência alerta, trabalhadores da Terra, sabemos onde se encontram a insignificância, a decadência, o divertimento corrupto…
O final do século XIX marca o apogeu
do teatro e do romance burguês, e a geração literária de 1885 reconhecerá
durante algum tempo como mestres Anatole France e Paul Bourget. Ora, nessa
mesma época há um drama, no domínio do conhecimento puro, muito maior e
palpitante do que entre os heróis do Divorce
ou do Lys Rouge. Produz-se uma súbita
embriaguez no diálogo entre materialismo e espiritualismo, ciência e religião.
Do lado dos sábios, herdeiros do positivismo de Taine e Renan, formidáveis
descobertas farão desmoronar as muralhas da incredulidade. Apenas se acreditava
nas realidades devidamente estabelecidas: bruscamente, é o irreal que se torna
possível. Observai os factos como se se tratasse de uma intriga romanesca, com
mudança repentina de personagens, intervenção dos traidores, paixões
contrariadas, debate entre ilusões.
O princípio da conservação da
energia era algo de sólido, de fixo, de marmóreo. E eis que o rádio produz
energia sem a ir buscar a qualquer fonte. Havia certezas a respeito da
identidade da luz e da electricidade: só se podiam propagar em linha recta e
sem atravessar obstáculos. E eis que as ondas, os raios X atravessam os
sólidos. Nos tubos de descarga, a matéria parece eclipsar-se, transformar-se em
corpúsculos. A transmutação dos elementos opera-se na natureza: o rádio
torna-se hélio e chumbo. Eis que a Época das Certezas se desmorona. O mundo já
não brinca ao jogo da razão! Tudo se torna então possível? De chofre, aqueles
que sabem, ou julgam saber, cessam de fazer a divisão entre física e
metafísica, coisa verificada e coisa sonhada. Os pilares do Templo fazem-se em
nevoeiro, os clérigos de Descartes deliram. Se o princípio de conservação da
energia é falso, que impediria o médium de fabricar um ectoplasma a partir de
zero? Se as ondas magnéticas atravessam a terra, por que motivo não poderá um
pensamento viajar? Se todos os corpos emitem forças invisíveis, por que não um
corpo astral? Se há uma quarta dimensão, será ela o domínio dos espíritos?
Madame Curie, Crookes, Lodge fazem
mexer as mesas. Edison tenta construir um aparelho que comunique com os mortos.
Marconi, em 1901, julga ter captado mensagens dos Marcianos. Simon Newcomb acha
absolutamente natural que um médium materialize crustáceos frescos do Pacífico.
Uma tempestade de fantástico irreal deita por terra os investigadores de
realidades.
Mas os puros, os irredutíveis,
tentam repelir essa corrente. A velha guarda do positivismo insurge-se. E, em
nome da Verdade, em nome da Realidade, recusa tudo: os raios X e os
ectoplasmas, os átomos e o espírito dos mortos, o quarto estado da matéria e os
Marcianos.
Assim, entre o fantástico e a
realidade vai desenrolar-se um combate muitas vezes absurdo, cego, desordenado,
que em breve se fará sentir em todas as formas do pensamento, em todos os
domínios: literário, social, filosófico, moral, estético. Mas é na ciência
física que a ordem se restabelecerá, não por regressão ou amputações, mas por
excesso. É na física que surge uma nova concepção. Devemo-la ao esforço de
titãs como Longevin, Perrin, Einstein. Uma nova ciência aparece, menos
dogmática que a antiga. Abrem-se portas sobre uma realidade diferente. Como em todo o grande romance, não há no fundo nem bons
nem maus e todos os heróis têm razão se a atenção do romancista se tiver
colocado numa dimensão complementar onde os destinos se tornam a encontrar,
confundindo-se, elevados em conjunto a um grau superior.
In «O Despertar dos
Mágicos – Introdução ao Realismo Fantástico», de Louis Pauwels e Jacques Bergier,
tradução de Gina de Freitas, Livraria Bertrand, Lisboa, Março de 1980 (11.ª
edição).
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