Mário Cláudio - Fotografia encontrada em http://www.cm-viladoconde.pt/ |
Fita 1, Lado A. Muito cedo, com a mãe e algumas,
enchia o barco que, de Manhente, as deporia, mais à louça, na festa de Vilar,
infusas e cântaros, sobretudo, moringues e chocolateiras, que haviam deitado no
casco, com os xailes a resguardá-los de chocar. Estava estremunhada, ainda,
pois que era a primeira vez que a arregimentavam, passara a noite, sem pregar
olho, a imaginar a travessia. E agradava-lhe a barqueira, mais velha que nova,
de rosto triangular e olhos sonsos, um contorno de boca de severidade e
ternura. Chamava-se Rosa, tal qual ela, encaravam-na como referência mitológica
quando, erecta, estribada nas tábuas do botezito, remava com um ritmo certo,
que coisa nenhuma era capaz de perturbar. E zarpavam, rumo à outra margem,
enquanto um noitibó se manifestava, na ramagem dos castanheiros a que as
videiras se apegavam. Depois, perante o dia adivinhado, imobilizavam-se todas,
a meio da viagem. E era a roda da vida, de repente, que passava, e havia só que
escutar o que a voz da barqueira lhes dizia. «A barca daqui», começava ela,
«todas as noites desaparecia. Certo dia o barqueiro, para descobrir a causa
daquele encantamento, meteu-se no porão, e pôs-se de atalaia. “Rema, rema”,
ouviu ele, que ordenavam, de cima. Mexeram um cadeado e, nisto, compreendeu que
estava em domínio das feiticeiras. “Cheira-me aqui a fogo vivo”, declarou uma
delas. “Deixa lá ir quem vai”, tornou outra. Andaram, andaram, até que ficou
queda a barca e o barulho acabou. À cautela espreitou o barqueiro, do porão, a
ver adonde estava, e cortou uma cana, e voltou à barca, e fez-se a caminho de
Vilar. Só quando aqui chegou é que, dando conta de que era a cana da Índia,
percebeu a que longes é que tinha viajado». E continuavam, sem se mover, a
igual distância de ambos os lados. E observava a rapariga aquelas pás
suspensas, gotejantes, a narradora que as sustentava, numa turva expectativa.
Tendo descalçado os socos, então, que ficaram jazentes, um no outro massajava
os pés, a enregelar nos coturnos de lã.
In «Rosa», de Mário Cláudio, colecção Biblioteca de Autores
Portugueses, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (INCM), Lisboa, Novembro de 1988
(1.ª edição).
Sem comentários:
Enviar um comentário