Fotografia encontrada em http://fora-da-estante.blogspot.pt/
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É a pele da terra, dizia o Lince, colocando as grandes fatias de musgo na canastra. O presépio de minha avó tinha fama. Construía-o junto à parede do fundo da sala de jantar, utilizando caixas de papelão e espelhos com que fazia as montanhas e os lagos da Judeia. Cobria os montes com flocos de neve, punha a cabana em Belém, com o Menino nas palhinhas, rodeado pela Mãe, por José, pelos pastores, pelo jumento e pela vaca. Depois as luzes, de várias cores. E uma estrela amarela que apontava para o caminho aos reis do Oriente.
Também armava a
árvore de Natal, com um pinheiro que o Lince cortava em Romarim. Mas eu
preferia o presépio. Sempre achei que o da minha avó era o mais bonito de Alma,
mais ainda do que o da Igreja. Trazia os meus amigos para eles verem. E toda a
gente admirava, até Aurélio Silveira e Florêncio Tavares, republicanos, laicos
e anticlericais, ainda que considerassem Jesus Cristo como um correligionário.
Então a casa
ficava diferente. Talvez por causa do cheiro do musgo, das luzes a acender e a
apagar na árvore e no presépio, talvez porque era Natal e havia um não sei quê
no ar, tudo mudava, a casa, as pessoas, o ritmo.
Na cozinha era um
frenesim. Não só pela actividade de minha avó, da minha mãe e das criadas, que
se afadigavam a fazer filhós, rabanadas, bolo-rei, leite-creme, mas pelo
constante ir e vir de Adelaide, Etelvininha, Tia Matilde, primas afastadas,
vizinhas. As mulheres dominavam a cozinha, dominavam a casa, dominavam tudo.
Meu pai começava a
ficar melancólico. Eu perguntava porque é que ele entristecia sempre que o Natal
se aproximava. A minha mãe respondia-me que eram saudades. Eu creio que era
feitio. Talvez fosse até um certo narcisismo. Lourenço de Faria, meu pai,
comprazia-se naquela forma de celebrar só para si uma íntima alegria triste.
Naquele Natal
éramos muitos à mesa. Claro que o narrador poderia organizá-los conforme
entendesse. Mas eu estou a vê-los ainda, a minha margem de manobra é estreita.
Numa das cabeceiras, a minha avó Beatriz, viúva revolucionária e republicana,
com a sua jóia de brilhantes na gargantilha preta; na outra o Primo Frederico,
monárquico integralista, sempre que se dizia o nome do rei levantava-se e fazia
uma vénia apesar dos seus cento e vinte e tal quilos. Resfolegava um pouco quando
comia, o que ma fazia impressão. Gostava muito de papas de abóbora e tinha de
pôr um guardanapo ao pescoço para não se sujar. Tia Hermengarda, com os seus
olhos maliciosos sempre a sorrir por detrás das grossas lentes, Tia Matilde, a
cabeça inclinada ora para um lado ora para outro, Aurélio Silveira, que bebia
de um trago o copo de vinho sempre que acabava de comer um prato, meu pai agora
um pouco menos melancólico, minha mãe, que trazia ao peito o alfinete com as
armas do meu pai, minha irmã Maria, de tranças e sobrancelhas muito carregadas,
o vaivém das criadas vestidas de preto com gola e punhos de renda brancos,
imagens, andam aí pelo ar, guardadas na memória, às vezes no esquecimento,
suspensas, autónomas.
Os murmúrios, as
cumplicidades, as lembranças.
Já a avó Beatriz
conta daquele Natal, há muito tempo, quando o avô a levou de manhã à cocheira
para lhe oferecer um cavalo branco. Já Tia Hermengarda fala de minha avó Leonor
e do seu palácio no Grande Canal, em Veneza. Já o Primo Frederico, que pela
terceira vez repete o bacalhau, recorda a estadia do grande Gallito em casa de
meu avô Júlio de Faria, em Aveiro.
Vejo ainda a lenha
a arder no fogão, as luzes do presépio e do pinheiro, as velas da mesa, as
lâmpadas do candeeiro suspenso irradiando por toda a sala. Oiço ainda o rumor
das conversas, o tinir dos talheres de prata, o som do vinho a cair nos copos,
o ruído dos pratos na cozinha. Como recuperar o crepitar da lenha, a luz, as
vozes?
Mas eis que dou
corda ao His Master Voice e coloco no prato um tango argentino, Plegária, se a memória não me falha. Já
o meu pai se levanta e começa a dançar sozinho. Parece o Rudolfo Valentino, diz
a Tia Hermengarda, que tinha um fraco pelo cinema e seus galãs.
Mas já eu folheio
os álbuns desbotados cheios de mortos em festas luminosas, tios e tias, primos
e primas de smoking e vestidos de
noite. A música parece vir daqueles bailes e daquelas festas, enquanto o meu
pai continua a dançar sozinho, ou talvez não. Quem eu vejo são os mortos e as
mortas de smoking e vestidos de
noite, são eles que dançam nos gestos e passos do meu pai na sala aquecida pelo
lume do fogão, as luzes, as conversas, o calor da consoada.
Por volta das
onze partiremos para Vilar onde todos os natais, à meia-noite, na capela do
Marquês, se ouve a missa do galo.
Mas eu já só
penso no dia seguinte. Levantar-me-ei cedo, muito cedo, para espreitar o
sapatinho junto do fogão da sala de jantar. E sei que no regresso de Vilar
terei o fogão do meu quarto aceso e adormecerei ouvindo a lenha crepitar,
aconchegado, quente, pensando talvez nos três reis magos que a essa hora já
devem seguir a estrela colocada pela minha avó sobre a cabana do presépio onde
Jesus acaba de nascer.
In «Alma», romance de
Manuel Alegre, colecção «Biblioteca de Bolso Dom Quixote – Série Literatura BBL»
(n.º 23), Publicações Dom Quixote, Lisboa, Fevereiro de 2002 (8.ª edição – 2.ª
edição de bolso).
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