Alfredo Quádrio Raposo, tendo entrado na Emissora
Nacional em 1935,
foi um dos relatadores de futebol mais conceituados no seu tempo
(Foto encontrada em http://industrias-culturais.blogspot.pt/)
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[…] Perguntei ao Joaquim Marceneiro. Ele abanou a cabeça e disse que tinha sido sempre assim.
Perguntei ao Vítor Sapateiro. Ele estava a cortar sola, olhou-me duramente
e respondeu: Estudar não é para os pobres. E havia azedume na sua voz, como se
estivesse zangado comigo. Tive a impressão de que me considerava culpado.
Fiquei magoado com o tom de Vítor Sapateiro e durante muito tempo não voltei à
oficina dele, nem sequer para comentar, à segunda-feira, os jogos de domingo e
os relatos de Alfredo Quádrios Raposo, o melhor locutor desportivo de todos os
tempos. Nesse tempo não havia transmissões directas e ao fim das tardes de
domingo ainda não se sabiam os resultados. Era preciso esperar pelo resumo da
primeira parte e o relato da segunda, que eu ouvia no RCA, em companhia dos
meus amigos que não tinham rádio. Ouvíamos então a voz inconfundível de Alfredo
Quádrios Raposo anunciar os golos do Peyroteu, os tentos do Julinho, as grandes
jogadas do Vasques e do Travassos, os cortes de cabeça de Feliciano, os dribles
de Mariano Amaro, a recepção de bola com o peito de Francisco Ferreira, capitão
do Benfica. E as defesa do Azevedo, do Capela, do Martins, do Barrigana, as
intercepções do Guilhar, os remates fulminantes de Araújo. Ou os nomes raros
dos jogadores do Sul, como o Abraão e o Grazina, do Olhanense, o Patalino e o
Massano, do Elvas. Eram momentos inesquecíveis, sobretudo quando havia jogos
entre os grandes. A minha irmã por vezes ia espreitar por detrás do aparelho e
nenhum de nós compreendia muito bem como era possível o jogo estar a decorrer
nas Salésias, em Alvalade, no Campo Grande ou na Constituição e nós em Alma a
ouvir o relato como se estivéssemos a ver. Seguíamos as palavras, as entoações
de voz, as mudanças de ritmo, as pausas. E víamos. Era uma forma de ficção,
quase sempre mais verdadeira do que a realidade. Nunca ninguém relatou como
Alfredo Quádrios Raposo. Ele era a nossa ligação à capital, ao Estádio, ao
jogo. Durante muito tempo ele foi a nossa festa, todos os domingos, ao fim da
tarde.
Os jogadores viviam na nossa imaginação como figuras de lenda.
Conhecíamo-los apenas das fotografias dos jornais, da revista Stadium e dos cromos que comprávamos
embrulhados em rebuçados para depois colarmos numa caderneta. Mas era na voz de
Alfredo Quádrios Raposo que verdadeiramente víamos os jogadores. Entravam em
nossa casa, todos os domingos, ao fim da tarde. Vinham na voz daquele locutor
de quem nunca vi o rosto nem faço a mínima ideia de como era, se alto ou baixo,
se magro, se gordo, se velho, se novo. Era uma voz, um brado na tarde triste,
um drible, um centro cruzado, um remate de cabeça, uma defesa para canto, uma
recarga, um golo. Primeiro no RCA, depois no Telefunken trazido da Alemanha por
Tiago de Faria, meu tio, que o deu a meu pai, juntamente com uma espingarda, a
troco de uma edição rara, senão mesmo a primeira, da Arte de Bem Cavalgar a toda a Sela, de D. Duarte.
Também esses velhos aparelhos, quando aqueciam, tinham um cheiro. Eu guardo
comigo o cheiro do RCA e do Telefunken nas tardes de domingo, um cheiro
inseparável da voz de Alfredo Quádrios Raposo e da imagem de Peyroteu a marcar,
com Feliciano à ilharga, mais um golo do Sporting contra o Belenenses, no
Estádio das Salésias.
Rostos, vozes, andam por aí pelo ar, não se podem ter sumido, devem estar
gravados algures, a prova é que estou a vê-los e a ouvi-las, são sete e meia da
tarde de um domingo chuvoso na casa da Rua Bartolomeu Dias, mais conhecida pela
Rua da Cheia, em Alma, alguém chama Duarte e só agora reparo que estão a chamar
por mim, este que conta, eu próprio, Duarte de Faria.
In «Alma», romance de Manuel Alegre, colecção «Biblioteca de Bolso Dom Quixote – Série Literatura BBL» (n.º 23), Publicações Dom Quixote, Lisboa, Fevereiro de 2002 (8.ª edição – 2.ª edição de bolso).
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