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sábado, 30 de janeiro de 2021

ODE À PAZ - Exorcismo para as mães voltarem dos montes



Cesse o ímpio desterro, ó Mães, e redivivo

Restaure o rito as torres das primitivas crenças!

Vossa espectral ausência foi-nos tempo perdido

      Em factícias ciências.

 

Fomos nós que fugimos ou vós as foragidas

De um descarnado credo? E em vagos horizontes

Do nosso sangue errais, a prantear-nos longínquas…

      Ó Mães, descei dos montes!

 

Estorcem-se em batalhas os campos dolorosos

E, numa correria por sonhos maus, em trânsito,

De guerra em guerra, somos um vaguear de autómatos

      Numa névoa de sangue.

 

Perdulários perdemos os nossos nomes próprios

E nas cinzas do verbo os números ensinam

A lógica mais triste de sermos uns para os outros

      Motivos de chacina.

 

Antes que as flores expirem numa lenta agonia,

Passe um bando de mísseis e nos leve nas garras,

De iluminar o nada a luz fique vazia

      E apodreçam as águas,

 

Antes que o tempo venha morrer nos nossos olhos,

Voltai do monte, ó nácar das madrugadas rústicas!

Ó Mães! Se os próprios deuses são vossos filhos pródigos,

      Perdoai nossas culpas!

 

Das moradas do ser éreis o muro e a telha,

Lençol tecido por mistérios femininos;

Numa inocência agrária, a lenha, o linho e a ideia

      Segura dos caminhos.

 

Éreis, de madrepérola, os pilares dos céus claros,

A pureza do pão e a limpeza dos ventos.

Foi isto há tanto tempo. Para que estrela mudastes

      As colunas do templo?

 

Onde cantam as aves que emudeceis nos ecos?

Nascem e morrem os deuses. Só vós que os procriais

E lhes fiais os fados sois por cima dos séculos

      Puramente imortais.




 







Vinde, sábias de novo, inspirar os oráculos,

Expulsar dos vaticínios os rostos funerários.

Apressai-vos, ó Mães! Que as pestes já estão prontas

      Nos nossos calendários.

 

No tráfego da ira, semáforos nucleares

Já impedem o trânsito para as últimas esperanças.

Vinde, meigas e mágicas ó fadas minerais

      De perdidas lembranças!

 

Com a frescura da origem voltai e novamente

Brilhe o ovo de prata de que somos nascidos,

A paz entre nos sonhos; e à casta nascente

      Retrocedam os rios.

 

Cesse o nosso castigo, Mães, despegai da cruz

A estampa triste deste agonizar infindo.

O deus prostrado e tétrico que ensanguentou a luz

      Também é vosso filho.

 

Que pomba nos trará notícias do armistício,

Que rosa deixará um perfumado rasto

Quando um deus condenado à lição do suplício

      Diviniza o holocausto?

 

Libertai-o e entre os deuses dai-lhe o lugar sadio

De filho humilde às vossas sentenças naturais.

Adorar só um deus é um orgulho sacrílego

      Que não nos perdoais.

 

Vinde fartas e férteis, claras vogais do verbo

Formosíssimas ânforas de bondade uterina!

Esconjurai, ó frutíferas!, os senhores dos ponteiros

      Que marcam a chacina.


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Poema de Natália Correia, Poesia CompletaO Sol nas Noites e o Luar nos Dias, com prefácio da autora, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999.

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