(…) Falo do contacto com o livro, enquanto unidade de pensamento e de
discurso. Apesar de hoje o confundirmos com o suporte impresso, o livro
conheceu já vários tipos de formato. Aquilo que melhor o caracteriza é
justamente o facto de constituir uma unidade concatenada imputável a um autor
(mesmo quando este é anónimo). Quer sob a forma de rolo quer sob a forma de
códex quer ainda sob o novo formato electrónico, o posto do livro continua a
ser o fragmento e a informação não autoral.
Embora possa acolher fragmentos (que muitas vezes sobraram de um livro ou
não chegaram a transformar-se nele) e também jornais e revistas, mapas,
gravuras e fotografias, a biblioteca guarda sobretudo livros.
Todos sabemos que o nosso tempo favorece o fragmento, seja em forma de
capítulo, seja em forma de paráfrase por vezes já não imputável a nenhum autor.
Esta mentalidade, que antes apenas prevalecia no Ensino Secundário, tem vindo a
ganhar espaço nas universidades. Mesmo em áreas onde se poderia esperar que a
sua implantação pudesse ser mais difícil (penso sobretudo nas Ciências Sociais
e nas Humanidades) existem sinais abundantes dessa tendência. O estudante
trabalha à base do ecrã, acciona motores de busca e cria a ilusão de que os
dados que recolhe equivalem a conhecimento caucionado. Alguns professores não
desistiram de verberar estes procedimentos, mas, muitas vezes de forma inconsciente,
outros vão fazendo concessões que crescem de ano para ano. Basta olhar para a
contracção das listagens bibliográficas da maior parte das cadeiras. Falo agora
apenas das cadeiras de Letras, evocando o meu tempo de aluno, quando os
programas eram acompanhados de longas listagens de estudos (na sua maioria,
constituídas por livros) quase nunca hierarquizada; evoco ainda o meu tempo de
assistente, onde me competia guiar os alunos por entre o emaranhado da
bibliografia que o Professor elaborava, permitindo a quem se contentava com a
mediania, dispensar a leitura de metade dos livros. Mas ainda sobrava quantiosa
metade e as instruções de então iam no sentido de criar naqueles que não lessem
tudo o remorso que os deveria levar a ler mais tarde. »
Excerto do artigo «A Biblioteca, a Universidade e o conhecimento em rede», de José Augusto Cardoso
Bernardes (director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra), publicado
na «Rua Larga» (Revista da Reitoria da UC), número 40, Julho de 2014
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