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sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

«A vindima», conto de Miguel Torga

 Fotografia encontrada em http://patriapequena.blogspot.pt/

Ao cabo de quatro dias de vindima na Arrueda, o cheiro do mosto embebedava os sentidos. E à noite, na cardenha, o Vitorino, com a namorada ali quase à mão de semear, não parava sobre a palha centeia, o colchão de todos. Era um rolar sem tino para um lado e para o outro, que metia aflição.
– Tu que tens? – perguntava-lhe o Rasga, farto de conhecer a causa do formigueiro.
– Nada… - e continuava a mexer-se, cada vez mais insofrido.
Como troncos derrubados, os restantes homens da roga jaziam estendidos e adormecidos no chão. Apenas os dois amigos velavam, a vigiar-se mutuamente.
– Vou até lá fora – disse por fim o Vitorino, sem poder mais. – Não me apetece dormir…
E saiu.
Pé ante pé, o Rasga foi-lhe no encalço. E o que havia de ver?... Um noivado ao luar, com a terra empapada de doçura a servir de lençol.
Passou a mão pelo restolho da barba, numa melancolia de faminto sem pão, e deixou os felizardos na paz do Senhor. Quando de madrugada o outro voltou à cama, só lhe disse:
– Valha-te Deus, homem! E agora?
– Agora caso com ela, pois então! Isto nem tira nem põe. O que se há-de fazer ao tarde…
Pela manhã a vindima continuou. Orvalhados, os bardos de moscatel eram polipeiros de olhos irónicos e coniventes. E a Lúcia, sumida no entrançado de vides e de folhas, enquanto cegava aquelas pupilas abelhudas, parecia um rouxinol:

Eu já vi a Tiraninha
A beber numa cabaça,
Olha a raça da Tirana
Que até no beber tem graça.

Ninguém lhe levava a palma. Desde a saída de Lamares que não se calara mais. À frente da estúrdia, de xaile à cabeça e cesta no braço, atirava com a voz bonita pelos montes a cabo, que nem o pai, no Maio, a semear milhão. O harmónio repenicava-se todo em redor dela. Os ferrinhos a dizerem que sim, que sim. E o bombo, apesar da tristeza a que a pele de cabra o condenava, a fazer quanto podia para dar também um ar da sua graça.
A lama de cinco meses de inverno, que a primavera apenas endurecera, era agora uma camada de poeira fofa pelo caminho além, a escaldar. O sol, depois de empassar as uvas, queria empassar a terra. Invulnerável, porém, o raio da rapariga rompia por ali adiante, com asas nos pés. E, mal o Doiro apareceu lá em baixo, ao fundo, como uma veia aberta a escoar-se morosamente do corpo ciclópico dos montes, atirou logo:

Foi no Pinhão…
Ia a vindimar um cacho,
Vindimei-te o coração.

Tinham findado de todo os horizontes largos do planalto, onde a alma corre de fraga em fraga, sempre à vista do céu. Encostas negras, em escada, cobertas de estevas ou eriçadas de zimbro, faziam tudo para entristecer quem lhes passava ao pé. À esquerda, um despenhadeiro de meter medo; à direita, uma penedia por ali acima, que só de vê-la faltava a respiração; ao longe, mortórios escalvados e desiludidos. Mas o grande rio doirado, que a luz da tarde transformar numa barra cintilante, chamava a si toda a atenção dos olhos, e a paisagem emergia do abismo engrandecida e transfigurada.
Ou porque trazia dentro o fogo da paixão a aquecê-la, ou inspirada pela beleza do cenário, a Lúcia punha o coração a voar:

À oliveira da serra
O vento leva a flor…

Só mesmo por alturas de S. Cristóvão é que esmoreceu. Ao passar diante do cemitério aproado como uma galera de morte no mar verde dos vinhedos, uma tristeza súbita calou-a. Obra dum suspiro, apenas. Daí a nada arrebitou outra vez, e, ao chegar à Arrueda, levava tudo adiante.

Ó Rita, arredonda a saia,
Ó Rita, arredonda-a bem…

Nem a cara seca e vermelha do Sr. Berkeley, o patrão, lhe meteu medo. Enquanto os mais, num respeito de escravos, se descobriam ou cumprimentavam aquele símbolo do trabalho e dos ganhos da Ribeira, continuou a cantar como se nada fosse, e à noite, ao deitar, ainda trauteava uma moda.
Foi a Guilhermina, já enfastiada, que a mandou calar.
– Não estás farta, mulher?!
Riu-se e continuou na dela. E agora, ao cabo de quatro dias de azáfama, tinha ainda a voz fresca como uma alface. E com segundas…

Eu hei-de te amar, Tirana.
Eu hei-de te amar, eu hei…
Eu hei-de te amar, Tirana,
Duma maneira que eu sei…

Os dois rapazes riram-se, num mútuo entendimento da significação oculta da cantiga. Depois, maldoso, o Rasga comentou:
– O que vala é que a Tirana tem as costas largas…
Ergueu o vindimeiro, ajeitou-o na troixa e foi juntar-se aos outros companheiros, enquanto o Vitorino ficou a olhar com ternura a rapariga, bem feita, desembaraçada, certamente fecundada já pelo seu amor.
Dispersa pela encosta, a roga mais parecia festejar um deus generoso e pagão do que trabalhar. Os geios eram degraus do Olimpo onde crescia e se colhia o espírito celeste. Cada canção – um hino de louvor. E os cestos acogulados, que desciam a escadaria de xisto aos ombros dos fiéis devotos, numa fila indiana, sonora e ritual – a dádiva desse amantíssimo Senhor, que só pedia contentamento em troca dos seus frutos.
Dir-se-ia que tudo naquele paraíso suspenso se movimentava lúdica e religiosamente. Nenhuma mágoa, nenhum ódio, nenhuma desconfiança do futuro. Alegre, a alma de cada romeiro entregava-se pressurosamente ao esquecimento colectivo que alijar do mundo as misérias e os desenganos. O tear mágico urdia desumanização. E só quando um dos fios da meada emperrava, e havia um solavanco no ritmo do cerimonial, é que se via que uma vontade prática subjazia ali, vigilante e profana. Ainda o Vitorino não acabar de sair da sua contemplação, já o Seara, o feitor lhe berrava aos ouvidos:
– Tu andas parvo ou quê? Mexe-te! Ergue e espera-me no armazém, que tens de preparar uma vasilha.

Chora videira,
Ó videirinha;
Chora videira,
Ó vida minha…

Cantavam todos. E o bombo, com a sua voz pesada, como que dava forma à incorpórea harmonia que, descuidada, descia em cascata pelos socalcos.

Chora videira,
Ó videirão;
Chora videira,
Ó meu coração.

Não havia tristeza que entrasse naquelas almas. Principalmente na de Lúcia, cada vez mais agradecida ao céu pela sua redenção terrena.
Entretanto, porque o deus da abundância não se cansava de multiplicar o mosto no lagar, para arranjar onde o meter, o Vitorino deslizava submisso pela portinhola dum tonel, tal as vítimas dos sacrifícios antigos pela boca do dragão.
Lá fora continuava o coro.
E o Seara, por causa daquele barulho e do ouvido duro do Sr. Berkeley, quando daí a bocado chegou congestionado à vinha e deu a notícia do desastre, quase teve de berrar.
Foi então que a voz de Lúcia estacou de vez. Garroteada como a do namorado, a garganta fechou-se-lhe num espasmo de perpétua agonia.
Transida e comandada por tão grave silencia, a roga emudeceu também.
Só a Casimira velha, desgarrada numa valeira solitária, que não ouvira nada da morte do Vitorino, asfixiado dentro do bojo da cuba, continuou a agoirar a tarde com o seu lamento fanhoso:

A mulher é desgraçada
Até no despir da saia;
Não há desgraça na vida
Que aos pés da mulher não caia…

In «Contos da Montanha», de Miguel Torga, Biblioteca de Bolso Dom Quixote – Literatura (BBL n.º 4), Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 2003 (4.ª edição na Dom Quixote).

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