«Os gigantes», Salvador Dalí, 1951. |
Então viviam numa cas boa e grande. Havia um andar apenas
para os pais, outro para o gigante e outro para a irmãzinha anã. O andar do
gigante era grande e muito arejado. Tinha um quarto para ele dormir e um salão
comprido cheio de luz. O da maninha anã era mais que um andar, tinha também um
quintalão enorme onde havia baloiços, tanque de areia e água para ela brincar,
nespereiras onde os baloiços estavam agarrados e palmeiras altíssimas, pelo
menos quatro, no sítio em que o quintal acabava.
Havia também uns muros de propósito para ela correr e se
habituar a correr sem cair e dentro dos limites de muros, para se habituar a
limites. Mas quando queria também corria sem muros. Depois das palmeiras e do
portão grande é que não.
Nesse espaço maravilhoso e gigantesco que pertencia à
irmãzinha havia anões e anãs de propósito para brincar com. É mesmo assim.
Brincar com. Era muito feliz e cheia de companhias e de espaços, a mana
anãzinha.
O mano gigante é que tinha outro modo de vida. No salão
grande que era só dele havia uma arca numa ponta e na outra extremidade uma
mesa. Em cima da mesa havia livros, muitos. Dentro da arca, dentro dela, que
estava sempre aberta, não, ela não era um caixão, havia ossos. Ossos muitos
ossos de todos os tamanhos e feitios. A anãzinha não se lembrava muito bem se
havia caveiras. Mas se havia, não lhe teriam chamado muito a atenção. Os braços
e pernas e coluna e costelas, desses, desses sim, lembrava-se muito bem.
A mana anã passava muitas horas no salão do seu mano
gigante. Não para brincar, que não era ambiente para isso. Mas porque,
primeiro, gostava muito do seu mano, segundo, gostava muito do contraste dos
tamanhos, terceiro, gostava do salão vazio, do espaço todo, só mesa de um lado
com livros, só arca do outro com ossos. Quarto, quer dizer, quarta razão pela
qual tinha curiosidade louca pelos livros do irmão e pelos ossos do irmão. Quer
dizer, salvo seja, os ossos que ele possuía na arca sempre aberta.
O gigante passava o tempo passeando de um lado para o
outro do salão com livros na mão, um de cada vez.
O gigante estudava Medicina.
A anã adorava o irmão, adorava ver estudar, adorava os
ossos que o irmão estudava.
Um dia perguntou-lhe: Mano, por acaso não serão esses
ossos os do Camões? Porquê?, perguntou o gigante curioso com a curiosidade da
sua mana anã. É que aqui só há ossos livros e eu sei que Camões escreveu livros
importantes. E o que aqui há é tudo importante, se não o meu mano gigante não
estava a estudar tanto.
O gigante sorriu-lhe ternamente como sorria sempre e
respondeu-lhe que os ossos do Camões estavam guardados numa arca muito mais
importante e guardada num sítio ainda mais importante. E para estudar Medicina
se utilizavam os ossos das pessoas muito menos interessantes que geralmente não
faziam livros pelo menos que se soubesse. Então a mana ficou satisfeita com
esta explicação e achou bem.
Achou que assim estava tudo correcto e lógico.
Um dia em que lá voltou à procura do sorriso terno e das
palavras doces do seu mano gigante, disse-lhe ensina-me alguma coisa de
Medicina, uma coisa que eu aprenda depressa e não me esqueça nunca. Então ele
respondeu-lhe: vou-te ensinar porque é que a tua madrinha de que tanto gostas e
devia ser gigante como eu é também anãzinha como tu. E disse-lhe: a paraplegia
pótica[1]
é produzida pelo abcesso extradural, intra-raquídeo e ante-medular. Diz.
Ela repetiu logo à primeira e nunca mais esqueceu. E já
chegava tudo para aquele dia.
In «Histórias de Cá e de Lá», de Lina Céu, Papiro Editora, Porto, Maio de 2010 (1.ª edição).
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