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O carro passou diante da
basílica da Estrela e ele olhou longamente a sua cúpula através do vidro. Era
bonita, a basílica, com aquela enorme cúpula barroca e o frontão trabalhado.
Era ali em frente, no jardim, que vários anos antes marcava encontro com
Ophélia Queiroz, o seu único grande amor. No banco do jardim da Estrela
trocavam beijos tímidos e solenes promessas de se amarem para sempre.
Mas a minha vida foi mais
forte do que eu e do que o meu amor, murmurou Pessoa, perdoa-me, Ophélia, mas
eu tinha de escrever, devia só escrever, não podia fazer mais nada, agora
acabou.
O táxi passou em frente da
Assembleia e depois seguiu pela Calçada do Combro. Em tempos tinha morado
naquela esquina, vários anos antes, num quarto alugado. A proprietária era a
Dona Maria das Virtudes, lembrava-se muito bem, era uma senhora de sessenta
anos, de peito abundante e cabelos pintados de amarelo que o convidava à noite
para beber a sua ginjinha e tomar parte em sessões de espiritismo. Entrava em
contacto com o seu defunto marido, o marechal Pereira, e tinha longas conversas
com ele sobre as guerras de África e o preço dos pimentos. Depois bebiam um
cálice de ginjinha, comiam uma ginja e Pessoa despedia-se dizendo: Boa noite,
Dona Maria das Virtudes, tenha bons sonhos. Retirava-se para o seu quarto.
Naquelas noites entrava em contacto com Bernardo Soares e escrevia para ele O Livro do Desassossego. Levantava-se de
madrugada para ver as gradações da luz sobre Lisboa e anotava-as num caderninho
forrado a pele que a mãe lhe tinha mandado da África do Sul.
Quando chegaram à Rua Luz
Soriano, foram mandados parar por um polícia.
Não podem passar, disse o
polícia, a rua está ocupada por uma manifestação nacionalista, há uma banda e
tudo, hoje a cidade está em festa.
O senhor Moitinho de
Almeida debruçou-se na janela.
Eu sou o Dr. Moitinho de
Almeida, disse ele com autoridade, temos de ir para o hospital de S. Luís dos
Franceses, levamos aqui um doente.
O polícia tirou o boné e
coçou a cabeça.
Oiça, senhor, disse ele,
vão fazer um pequeno desvio, é um sentido proibido, mas neste caso podem
passar, voltem à direita, depois à esquerda e estão no Bairro Alto.
Pessoa sorriu porque o tinha
reconhecido. Era Coelho Pacheco, um seu heterónimo raro, alguém que só tinha
feito poesia uma vez e o que escrevera era sombrio e visionário, de estilo
neogótico. O que é que Coelho Pacheco faria ali, vestido de polícia? Talvez o Mestre
o tivesse enviado para lhe preparar o caminho que devia seguir. Pessoa levantou
a mão e fez-lhe um sinal esotérico. Coelho Pacheco fez-lhe também um sinal
esotérico e o táxi tomou a primeira rua à direita.
In «Os
três últimos dias de Fernando Pessoa. Um delírio», de Antonio Tabucchi (com
tradução de Maria da Piedade Ferreira), Quetzal Editores, Lisboa, Fevereiro de
1999 (4.ª edição).
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