Thomas Mann |
Céu, terra e mar jaziam
ainda numa palidez crepuscular, vítrea, imaterial; uma estrela perdida nadava
na ausência de ser. Mas chegou um sopro de lugares longínquos, uma nova alada,
e dizia que Eos se levantara do leito do esposo, e veio então o primeiro e doce
enrubescer das linhas mais distantes do mar e do céu com que a criação se
anuncia aos sentidos. A deusa aproximava-se, ela que raptara Clito e Céfalo e
gozava agora o amor do belo Oríon, desafiando a inveja dos deuses no Olimpo.
Sobre a margem do mundo caiu uma poalha rosa, um brilho e florescer de graça
indizível, nuvens infantis, banhadas de luz e transparentes, flutuavam no ar
azulado e rosa como pequenos amoretti,
caía púrpura sobre o mar e era espalhada pelas ondas, lanças de ouro rasgavam o
ar à altura do céu, o brilho tornou-se fogo, em silêncio, com violência divina
desmedida, brilho e ardor e labaredas voluteavam, e com cascos impacientes os
corcéis sagrados de Apolo levantaram da esfera da Terra. Iluminado pelo
esplendor do deus, o homem em vigília solitária fechou os olhos e deixou que as
suas pálpebras fossem beijadas pela glória. Com um sorriso confuso, perplexo,
reconheceu sentimentos passados, tormentos preciosos e prematuros do coração,
que haviam perecido no ofício rígido da sua vida e que agora regressavam
surpreendentemente transfigurados. Ansiava, sonhava, os seus lábios formaram
lentamente um nome, e sorrindo sempre, a face virada para a frente, as mãos
cruzadas no colo, adormeceu novamente na cadeira.
In «A morte
em Veneza», de Thomas Mann (tradução de Isabel Castro Silva e revisão técnica
de Helder Guégués), Colecção «Ficções» (n.º 21), Relógio D’Água Editores, Lisboa,
Junho de 2004 (1.ª edição).
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