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quarta-feira, 20 de maio de 2020

«Unamuno», texto de Manuel Hermínio Monteiro

Foto encontrada em https://www.cnc.pt/o-sentimento-tragico-da-vida-de-miguel-de-unamuno/

Vinha periodicamente no fumarento comboio de Salamanca, que desde Barca d’Alva corria com o Douro até ao Porto. Deveria ter Guerra Junqueiro a esperá-lo e as férias em Espinho davam-lhe a companhia de Manuel Laranjeira. Visitava, em Coimbra, Eugénio de Castro. Em Amarante hospedava-o o solar de Pascoaes. Prendeu-se de amores por Portugal. António Ferro escrevia surpreendido, em 1933, no prefácio do livro da República Espanhola que a parte portuguesa da biblioteca de Unamuno era uma «capelinha», o «recanto mais enternecido» onde se podia ver «Oliveira Martins, Junqueiro, Herculano, Eugénio de Castro, Pascoaes, Eça de Queirós, Fialho, Camilo, Raul Proença, alguns livros de gente nova, um livro de Mário de Sá-Carneiro com uma dedicatória exaltada, quatrocentos ou quinhentos volumes onde correm o pensamento e a alma portuguesa».
A sua larga correspondência com Pascoaes foi publicada sob o título Epistolário Ibérico. Mas a Casa-Museu de Unamuno, em Salamanca, alberga ainda inúmera correspondência de intelectuais portugueses, inclusive algumas pouco conhecidas cartas de Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.
Nenhum estrangeiro como D. Miguel de Unamuno tocou tão afectuosa e compreensivelmente o «feitio» português. O relato da Camélia do Bom Jesus de Braga, o texto do Sabugal, retirado dum jornal da Guarda, o retrato de Buíça, o drama de Laranjeira, ou a análise de As Sombras de Pascoaes, ou as almas do purgatório ou a D. Constância de Eugénio de Castro são alguns dos nódulos de uma pessoalíssima leitura de Portugal em crise, atacado pelo desencanto e mesmo pelo suicídio na transição do século XIX. Juntam-se aos outros retratos da Espanha, escritos por um autêntico peregrino de paisagens físicas e espirituais. Fica-nos a imagem diversa e apaixonada da Ibéria atravessada pelo passo decidido de Unamuno.
Por tudo isto, custa-nos compreender os quase 80 anos que retardaram a tradução e a edição portuguesa de Por Terras de Portugal e da Espanha, uma obra a vários títulos fundamental.

In A Phala, n.o16, Outubro 1989 (texto recolhido na obra «Urzes», 
editada por Manuela Correia, com a chancela de O Independente, em 2004)

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