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quinta-feira, 14 de maio de 2020

«Actividade esquisita», nas palavras de Manuel Hermínio Monteiro



Não conheço muitos editores, quero dizer, tenho alguns amigos que são editores. Não sei, em boa verdade, como funcionará a maioria de outras casas editoras. Falo por mim. Com mais de uma década nesta actividade, ganha-se uma particular visão das palavras escritas que nos rodeiam. Do que aspira ao livro. O livro como ponto de chegada e, depois, o texto multiplicado como pães do milagre. A metáfora poderia ser a da ampulheta em que um produto sólido se pulveriza para descer à base. E a ampulheta é o editor, virando e revirando conforme cada edição. Mas, se o mecanismo é sempre parecido, a substância jamais se repete.
Primeiro capítulo. É verdade que todo o editor aspira a publicar os livros dos autores da sua preferência. Quer tê-los consigo, constituir a sua família. Mas nem sempre é assim. Muitas vezes são os livros que vêm ter com o editor. Alguns procuram-no há séculos, à espera da janela que dá para a rua. Fernando Rojas, Ramon Llull, Walt Whitman ou Novalis quiseram e tiveram em mim essa oportunidade. Com mais ou menos coerência, o editor vai organizando o seu catálogo. No final, ele pode ser visto como um grande cadáver esquisito surrealista. Com inesperadas intromissões, acrescentos, fugas para outras ou novas colecções, os acrescentamentos e as obliterações dos que desaparecem por «esgotamento».
Mas, no quotidiano, o editor é permanentemente bombardeado por um número impressionante de aspirantes a novos escritores. Poucos imaginarão quanto se escreve nos silêncios deste Portugal. Há uma imensidão de pessoas a mexer nas letras e nos sentimentos. A arquitectar poemas e histórias. Depois, enviam as suas obras para as editoras. Ou aparecem pessoalmente.
Guardo algumas histórias curiosas desses encontros. Desde o senhor idoso que traz os seus originais num saco de pó de talco, que o nervosismo e o sopro transformam num indescritível nevoeiro que cresce por todo o escritório, até damas envoltas em perfumes tão caros quanto insuportáveis. Uma outra senhora que envia vinte contos «para compensar o trabalho de ler o seu original». Outro que está no hospital, quase a entrar para a sala de operações, e quer saber com urgência se os seus textos têm ou não qualidade. Há aquele que chega a trazer 4000 páginas manuscritas para publicação, e o outro que tem a certeza de que haverá, pelo menos, 100 000 pessoas determinadas e ávidas do seu texto, que seguramente «vai vender… que nem pãezinhos». Depois, há os que oferecem «todo o dinheiro que seja necessário» para ver o seu livro cá fora, e também os mais prepotentes, que julgam fazer-nos o maior favor do mundo possibilitando-nos a edição do seu livro que os acompanha há décadas e, quanto a eles, «uma verdadeira obra-prima».
No segundo capítulo aparecem os escritores que até já publicaram noutros lados e acumulam uma desconfiança generalizada de que os editores são uns oportunistas que vivem à custa dos autores. Que falsificam as tiragens. Que é impossível que o seu livro não tenha vendido dezenas de milhar de exemplares, pois, pelo menos, todos os seus amigos o compraram. Desconfiam da eficácia da promoção que lhes é feita. Convencem-se de que é o próprio editor a boicotá-los, porque o seu livro não se vê nas livrarias. O pior é que nem disfarçam o ressentimento íntimo de que o editor os explora; «fartando-se de ganhar dinheiro à custa do seu talento».
Neste exemplo caberia Miguel Torga que, até ao fim da vida, persistiu em ser senhor pleno da sua obra, evitando dar lucro editorial a terceiros. Disse-me mais do que uma vez: «Os editores não me largam. Eu bem sei o que eles querem. Querem ganhar dinheiro à minha custa.»
Finalmente, «os mistérios gloriosos». O maior prazer do editor. Sinto-o mais de uma vez. A primeira vez foi no metro, nas mãos de um desconhecido em leitura atenta. Um livro que eu sabia ser bom e transportava indecifravelmente uma secreta história editorial que jamais aquele acidental leitor conheceria. Depois, o gozo de cheirar os livros frescos de tinta, novos, acabados de chegar da tipografia. Vê-los nas estantes de gente que apreciamos. E surpreendê-los expostos, inesperadamente, em montras de países estrangeiros. E receber uma ou outra carta a testemunhar quanto um determinado livro foi importante na sua vida. Ele há tanto mistério a envolver cada livro! Mas isso é já substância para outras histórias.

In Ler / Livros & Leitores, n.o 35, Verão 1996.

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