Não conheço muitos editores, quero
dizer, tenho alguns amigos que são editores. Não sei, em boa verdade, como
funcionará a maioria de outras casas editoras. Falo por mim. Com mais de uma
década nesta actividade, ganha-se uma particular visão das palavras escritas
que nos rodeiam. Do que aspira ao livro. O livro como ponto de chegada e,
depois, o texto multiplicado como pães do milagre. A metáfora poderia ser a da
ampulheta em que um produto sólido se pulveriza para descer à base. E a
ampulheta é o editor, virando e revirando conforme cada edição. Mas, se o
mecanismo é sempre parecido, a substância jamais se repete.
Primeiro capítulo. É verdade que todo
o editor aspira a publicar os livros dos autores da sua preferência. Quer
tê-los consigo, constituir a sua família. Mas nem sempre é assim. Muitas vezes
são os livros que vêm ter com o editor. Alguns procuram-no há séculos, à espera
da janela que dá para a rua. Fernando Rojas, Ramon Llull, Walt Whitman ou Novalis
quiseram e tiveram em mim essa oportunidade. Com mais ou menos coerência, o
editor vai organizando o seu catálogo. No final, ele pode ser visto como um
grande cadáver esquisito surrealista. Com inesperadas intromissões,
acrescentos, fugas para outras ou novas colecções, os acrescentamentos e as
obliterações dos que desaparecem por «esgotamento».
Mas, no quotidiano, o editor é
permanentemente bombardeado por um número impressionante de aspirantes a novos
escritores. Poucos imaginarão quanto se escreve nos silêncios deste Portugal.
Há uma imensidão de pessoas a mexer nas letras e nos sentimentos. A arquitectar
poemas e histórias. Depois, enviam as suas obras para as editoras. Ou aparecem
pessoalmente.
Guardo algumas histórias curiosas
desses encontros. Desde o senhor idoso que traz os seus originais num saco de
pó de talco, que o nervosismo e o sopro transformam num indescritível nevoeiro
que cresce por todo o escritório, até damas envoltas em perfumes tão caros
quanto insuportáveis. Uma outra senhora que envia vinte contos «para compensar
o trabalho de ler o seu original». Outro que está no hospital, quase a entrar
para a sala de operações, e quer saber com urgência se os seus textos têm ou
não qualidade. Há aquele que chega a trazer 4000 páginas manuscritas para
publicação, e o outro que tem a certeza de que haverá, pelo menos, 100 000
pessoas determinadas e ávidas do seu texto, que seguramente «vai vender… que
nem pãezinhos». Depois, há os que oferecem «todo o dinheiro que seja
necessário» para ver o seu livro cá fora, e também os mais prepotentes, que
julgam fazer-nos o maior favor do mundo possibilitando-nos a edição do seu
livro que os acompanha há décadas e, quanto a eles, «uma verdadeira
obra-prima».
No segundo capítulo aparecem os
escritores que até já publicaram noutros lados e acumulam uma desconfiança
generalizada de que os editores são uns oportunistas que vivem à custa dos
autores. Que falsificam as tiragens. Que é impossível que o seu livro não tenha
vendido dezenas de milhar de exemplares, pois, pelo menos, todos os seus amigos
o compraram. Desconfiam da eficácia da promoção que lhes é feita. Convencem-se
de que é o próprio editor a boicotá-los, porque o seu livro não se vê nas livrarias.
O pior é que nem disfarçam o ressentimento íntimo de que o editor os explora;
«fartando-se de ganhar dinheiro à custa do seu talento».
Neste exemplo caberia Miguel Torga
que, até ao fim da vida, persistiu em ser senhor pleno da sua obra, evitando
dar lucro editorial a terceiros. Disse-me mais do que uma vez: «Os editores não
me largam. Eu bem sei o que eles querem. Querem ganhar dinheiro à minha custa.»
Finalmente, «os mistérios gloriosos».
O maior prazer do editor. Sinto-o mais de uma vez. A primeira vez foi no metro,
nas mãos de um desconhecido em leitura atenta. Um livro que eu sabia ser bom e
transportava indecifravelmente uma secreta história editorial que jamais aquele
acidental leitor conheceria. Depois, o gozo de cheirar os livros frescos de
tinta, novos, acabados de chegar da tipografia. Vê-los nas estantes de gente
que apreciamos. E surpreendê-los expostos, inesperadamente, em montras de
países estrangeiros. E receber uma ou outra carta a testemunhar quanto um
determinado livro foi importante na sua vida. Ele há tanto mistério a envolver
cada livro! Mas isso é já substância para outras histórias.
In Ler / Livros & Leitores, n.o 35, Verão 1996.
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