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A princípio, o mar, a praia, o casario de madeira, o falar das gentes, tinham sido para ela um encantamento. Mas um ano depois já estava ao balcão como forçada. Era uma pessoa fora da sua terra. Doía-lhe a saudade das colinas, das vinhas que o sol fascinava, da voz do vento coada pelas ramagens, dos corvos do alto, das searas, da terra firme. Mas não lhe saía um queixume do peito. Ia à vila buscar os artigos, regateava um centavo, em pouco convencera o homem a alugar cas junto às dunas, e ainda ali ia persegui-la a voz do mar, ressoante do vento e dos búzios. De princípio, os pescadores, desconfiados da gente da serra, não entravam: preferiam outra venda no fundo da lagoa, que nascia de um braço transviado do rio, o dono tocava sanfona, fazia serenatas, até era chamado pela gente da cidade. Carminda, porém, queria vencer.
O
homem troçava dos seus esforços, mordiscava-a:
–
Anda, vai chamá-los…!
Mas
Carminda queria regressar vencedora à sua terra e oferecer a capela a S. Brás.
Levou um lindo galo à mulher do Clemente, fiscal do mar, um avental bordado à
Mari Dolores, filha do arrais. E então eles foram-se encostando ao umbral da
sua venda, entre o entrar e o não entrar, à espera da maré. E em breve metade
do povo era seu. Vinha o enchido da serra e os homens gostavam do paladar.
Cercou umas braçadas de areia da banda do norte da cas com tábuas espetadas ao
alto; de noite, pegava num canastro e andava quilómetros para buscar terra,
terra negra, terra onde pudesse crescer uma coisa verde. Plantou uma horta e
uma dália. Uma dália vermelha, um ser vivo nascido da terra, que a aragem do
mar esmorecia. Mesmo assim, era um sinal da sua ideia. Mais tarde, forrou a sal
de jantar e o quarto a crespo e cal. Contava o dinheiro dia a dia, com as
portas já cerradas, embora João António se revoltasse em silêncio contra aquela
conquista das suas tarefas e direitos. Enquanto ele ressonava, indiferente,
Carminda abria os olhos para a negrura das tábuas do tecto e entregava-se aos
braços do sonho. Haviam de partir dali já com o dinheiro para a capela e par a
compra da quinta da Mata. O marido nunca adivinhara esse ódio ao mar, aos
pescadores, à lagoa adormecida. Julgava-a contente com aquele bem-estar. Por
seu lado, criara amizades, gostava de uma caldeirada na praia com bom vinho
maduro, dos camisolões de Inverno que espantariam os camaradas lá da aldeia. A
ideia da terra ia-se esbatendo. Aqui, para ele, não havia enxada, nem penúrias,
e o dinheiro entrava. Com a gravidez da mulher, mais se pegou ao mar: era ali a
sua vida, a sua gente, gostava de contemplar as vagas do cimo das falésias,
dava-lhe um saboroso quebranto físico. Na saída dos barcos para a pesca, quando
as proas se empinavam às ondas, e o mulherio esbracejava, aos gritos, as viúvas
agoirentas rezando nas dunas, então tremia. Mas até isso era grandioso.
E
Carminda, agora, com aquela ideia de ter a criança na aldeia! Que fosse. «O meu
filho.» Como se fosse uma coisa já viva, como se essa coisa já viva não
pertencesse ao mar, ao povo que lhe tinha dado o pão, como se nem a ele, pai,
pertencesse também. «O meu filho.» E falava com um rancor de posse, de ódio,
aloucada. Que fosse, então. E ele, a bem dizer, havia de gostar desses meses de
liberdade, dessas noites que passaria na cidade, como solteiro…
In «Casa da Malta»
(novela), de Fernando Namora, Publicações Europa-América, Mem Martins, s/d (15ª
edição).
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