21 de Julho de 2018
Houve
um período, que felizmente acabou há já algum tempo, em que acreditei que, se
uma narrativa não fosse absolutamente nova, se não fosse comparável senão a si
própria e a nada mais, melhor seria deitá-la fora. Tratava-se de uma atitude
extremamente presunçosa e ao mesmo tempo extremamente ingénua. Assentava na
hipótese não declarada de eu ser dotada de capacidades extraordinárias,
seguindo-se daí que, se essas capacidades não se manifestassem em obras
absoluta e preciosamente únicas, me restava tirar lucidamente as seguintes
conclusões: estava a trair-me a mim própria por preguiça, por facilitismo, ou a
minha hipótese era completamente infundada. Em suma, não valia a pena escrever,
se não estivesse em condições de escrever coisas que fossem, ao mesmo tempo que
completamente diferentes, melhores do que livros que amava e que tinham estado
na origem da minha obsessão narrativa. Com o tempo mudei de opinião. Hoje
fio-me pouco nos que dizem: eis um livro verdadeiramente novo. De
verdadeiramente novo em literatura não há senão o nosso modo extremamente
individual de usar o depósito da literatura planetária. Estamos mergulhados
naquilo que nos precedeu. Não entendo os manuais escolares que alinham
cronologicamente autores, vidas e obras, das origens aos nossos dias, nem a
lista detalhada das leituras que fizemos dos sete anos em diante. Não há um
antes do qual sejamos o depois. Toda a literatura, grande ou medíocre que seja,
é nossa contemporânea, acumula-se à nossa volta enquanto escrevemos, é o ar que
respiramos. Por conseguinte, as nossas páginas nunca são “novas” no sentido que
a indústria cultural dá ao adjectivo. Constituem antes a marca do modo como,
querendo ou não querendo, nos alimentamos da tradição para exprimir – no seu
interior – a nossa individualidade. Nenhum autor isolado esgota em si próprio a
literatura produzindo textos sem dívidas. Não existem obras que cortem cerce
com o passado, obras que o dispensem, obras que separem as águas. A novidade
literária – se se quiser mesmo insistir nesse conceito – é dada pelo modo como
cada indivíduo habita o magma pelo qual é arrastado. Tarefa árdua, portanto,
distinguir-se e talvez também não realmente necessária. Surpreendem-me os que
exibem provocantemente a sua “novidade”, que se consideram únicos, que não
querem admitir influências. É uma exibição espectacular de arrogância para uso
dos media, ou uma manifestação do terror de não se conseguir ter uma
individualidade própria, como se esta só se pudesse manifestar negando a
matéria literária que nos constituiu e constitui. Na realidade nem sequer
Homero foi alguma vez “novo”. Provavelmente o autor singular toma a cada vez
forma, graças a um esforço de reordenamento do material literário que o
precede. E de facto já não é pouco.
Crónica de Elena Ferrante (com tradução de Miguel Serras Pereira), incluída no livro «A Invenção Ocasional», Relógio D’Água Editores, Lisboa, Julho de 2019.