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Observações sobre a intelectualidade[1]
O
meu amigo Miguel Rojo, além de ser um tipo estupendo na casa de quem se come o
melhor cordeiro de Espanha, é um escritor dotado de um insuperável talento para
surpreender a intelectualidade. Certa vez, coube-lhe assistir a um ciclo de
conferências em que um grupo de escritores que preferiam definir-se a si mesmos
como intelectuais esmiuçava os fortes e belos motivos que a todos tinham
conduzido à literatura, para o bem e para o mal, embora eles preferissem dizer
«à intelectualidade». Todos sem excepção falavam das formidáveis bibliotecas
das suas casas paternas e narravam as suas aventuras de leitores precoces que,
antes de irem para a escola, já possuíam um conhecimento bastante profundo dos
clássicos – Cervantes, Shakespeare, Molière – a quem chamavam companheiros de
infância ou «amigotes».
O
meu amigo Miguel, que teve uma infância mais ou menos normal numa aldeia
asturiana, a tomar banhos de rio, a atirar pedras ao campanário da igreja, a
caçar alguma lagartixa ou a olhar para debaixo das saias das raparigas que
atravessavam uma velha ponte de pedra, ouviu-os em rigoroso silêncio, e quando
lhe tocou a vez de contar como, quando e porque tinha chegado à literatura,
suspirou, lançou-lhes um olhar surpreendido, enrugou a testa, num exercício
facial e muscular que os intelectuais presentes interpretaram como o início de
uma viagem às raízes do conhecimento.
–
Como todos sabem, nasci e cresci numa aldeia – começou por dizer –, um sítio de
bucólica paz marcado por alvoradas muito frias e tardinhas assinaladas pelas
vacas que, pacientes, se retiravam do campo. A casa era partilhada pelos meus
pais, os meus irmãos, os meus avós, alguns parentes inimigos de dormir com intempérie,
e oito vacas. As pessoas ocupavam o piso superior da casa tipicamente
asturiana, e as vacas, a parte de baixo, numa divisão aceite por todos como
algo natural.
»Mal
nos fechávamos em casa, mãos diligentes acendiam um candeeiro a petróleo e, em
seguida, cada um se retirava para o canto preferido para se dedicar à leitura.
O meu avô era fanático de Ovídio, a minha avó, pelo contrário, manifestava um
amor desmesurado pela obra de Hölderlin, Novalis e outros românticos alemães, o
meu pai costuma blasfemar porque depois de ler todos os autores do Século de
Ouro considerava desprovidos de interesse os autores modernistas, a minha mãe,
afrancesada, opinava que Flaubert era quem estava mais perto da perfeição
literária, e os meus parentes, mais dados à literatura picaresca, liam Rinconete y Cortadillo[2], O Lazarilho de Tormes, provocando breves altercações quando
levantavam a voz desnecessariamente. Os meus irmãos, de seis, sete e oito anos,
respectivamente, obstinados, liam os autores do nouveau roman; Nathalie Sarraute, Michel Butor e Alain
Roble-Grillet passavam pelas suas mãos ávidas e ainda besuntadas com os restos da
tortilha que tinham jantado, e as vacas eram decididamente admiradoras de
Rilke. Assim o davam a entender com os seus mugidos aprovadores quando as
ordenhávamos.
»Assim
transcorriam as horas nocturnas, fora de casa chovia, nevava, uivavam os lobos,
e, lá dentro, a família entregava-se ao prazer da leitura num silêncio que
muitos vizinhos interpretavam como suspeito. À alba, cada um guardava os seus
livros num móvel fechado, alguém perguntava como seria ter camas, e a família
entregava-se aos trabalhos do campo, toda, excepto o meu pai, que, calcorreando
alegremente os oito quilómetros até ao quartelzinho da Guarda Civil, ia cumprir
a rotina repressora do franquismo e da Igreja católica.
»No
pequeno quartel, além do meu pai, havia outros três guardas civis vestidos
rigorosamente de cinzento, com os tricórnios reluzentes. Cumprimentavam-se,
emborcavam um bom trago de Anis del Mono,
e, seguidamente, dirigiam-se para o canto da armaria. Aí, no meio de
espingardas e pistolas, encontravam-se ordenados por ordem alfabética os livros
dos autores que mais os apaixonavam, quase todos eles existencialistas.
»Às
vezes, um deles saía do quartel e regressava com um prisioneiro acusado de
roubar uma vaca e, de imediato, outro guarda civil, feroz leitor de
Kierkegaard, pregava-lhe duas bofetadas ao mesmo tempo que o repreendia por não
compreender que ele se pudesse sentir atraído por uma vaca e considera-la
única, embora para a vaca ele não passasse de um homem entre milhares, carente
de individualidade. Em seguida, outro guarda civil dava outro tabefe ao
prisioneiro e explicava-lhe que, de acordo com a correcta interpretação do Dasein de Heidegger, não devia ter
permitido que o prendessem, pois a sua culpa existiu apenas no momento em que
roubou a vaca, não antes nem depois. O encarregado de lhe dar a terceira
bofetada era um guarda civil andaluz, fanático de Camus, que, chamando-o «gémeo
de Meursault», quase o convencia de que aquela e todas as bofetadas, na
realidade, não lhe doíam porque estavam dirigidas à sua cara mesmo antes de ele
existir, e, portanto, nascera com aquela dor. O meu pai, pelo contrário, devoto
de Sartre, aplicava-lhe um par de pontapés e depois soltava-o, explicando aos
outros que se era certo que havia uma marca bem nítida numa perna da vaca, a
individualizar o proprietário, também o era que os homens interpretam os signos
à sua maneira.
»Geralmente,
terminavam os dias de serviço a discutir acaloradamente os limites do finito e
do infinito na obra de Hegel. Então, bebiam outro trago de Anis del Mono, penduravam os tricórnios e davam o dia por
concluído.
O
meu amigo Miguel Rojo concluiu a sua intervenção em meio de um denso silencia da
intelectualidade.
–
A tua aldeia deve ser a Atenas das Astúrias – disse um.
–
O que quer dizer que o conhecimento rupestre existe – ponderou outro.
E
o meu amigo Miguel Rojo retirou-se a pensar como é fácil fazer felizes os
intelectuais.
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