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domingo, 7 de junho de 2020

UMA PÉROLA DO SAUDOSO LUIS SEPÚLVEDA

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Observações sobre a intelectualidade
[1]

O meu amigo Miguel Rojo, além de ser um tipo estupendo na casa de quem se come o melhor cordeiro de Espanha, é um escritor dotado de um insuperável talento para surpreender a intelectualidade. Certa vez, coube-lhe assistir a um ciclo de conferências em que um grupo de escritores que preferiam definir-se a si mesmos como intelectuais esmiuçava os fortes e belos motivos que a todos tinham conduzido à literatura, para o bem e para o mal, embora eles preferissem dizer «à intelectualidade». Todos sem excepção falavam das formidáveis bibliotecas das suas casas paternas e narravam as suas aventuras de leitores precoces que, antes de irem para a escola, já possuíam um conhecimento bastante profundo dos clássicos – Cervantes, Shakespeare, Molière – a quem chamavam companheiros de infância ou «amigotes».
O meu amigo Miguel, que teve uma infância mais ou menos normal numa aldeia asturiana, a tomar banhos de rio, a atirar pedras ao campanário da igreja, a caçar alguma lagartixa ou a olhar para debaixo das saias das raparigas que atravessavam uma velha ponte de pedra, ouviu-os em rigoroso silêncio, e quando lhe tocou a vez de contar como, quando e porque tinha chegado à literatura, suspirou, lançou-lhes um olhar surpreendido, enrugou a testa, num exercício facial e muscular que os intelectuais presentes interpretaram como o início de uma viagem às raízes do conhecimento.
– Como todos sabem, nasci e cresci numa aldeia – começou por dizer –, um sítio de bucólica paz marcado por alvoradas muito frias e tardinhas assinaladas pelas vacas que, pacientes, se retiravam do campo. A casa era partilhada pelos meus pais, os meus irmãos, os meus avós, alguns parentes inimigos de dormir com intempérie, e oito vacas. As pessoas ocupavam o piso superior da casa tipicamente asturiana, e as vacas, a parte de baixo, numa divisão aceite por todos como algo natural.
»Mal nos fechávamos em casa, mãos diligentes acendiam um candeeiro a petróleo e, em seguida, cada um se retirava para o canto preferido para se dedicar à leitura. O meu avô era fanático de Ovídio, a minha avó, pelo contrário, manifestava um amor desmesurado pela obra de Hölderlin, Novalis e outros românticos alemães, o meu pai costuma blasfemar porque depois de ler todos os autores do Século de Ouro considerava desprovidos de interesse os autores modernistas, a minha mãe, afrancesada, opinava que Flaubert era quem estava mais perto da perfeição literária, e os meus parentes, mais dados à literatura picaresca, liam Rinconete y Cortadillo[2], O Lazarilho de Tormes, provocando breves altercações quando levantavam a voz desnecessariamente. Os meus irmãos, de seis, sete e oito anos, respectivamente, obstinados, liam os autores do nouveau roman; Nathalie Sarraute, Michel Butor e Alain Roble-Grillet passavam pelas suas mãos ávidas e ainda besuntadas com os restos da tortilha que tinham jantado, e as vacas eram decididamente admiradoras de Rilke. Assim o davam a entender com os seus mugidos aprovadores quando as ordenhávamos.
»Assim transcorriam as horas nocturnas, fora de casa chovia, nevava, uivavam os lobos, e, lá dentro, a família entregava-se ao prazer da leitura num silêncio que muitos vizinhos interpretavam como suspeito. À alba, cada um guardava os seus livros num móvel fechado, alguém perguntava como seria ter camas, e a família entregava-se aos trabalhos do campo, toda, excepto o meu pai, que, calcorreando alegremente os oito quilómetros até ao quartelzinho da Guarda Civil, ia cumprir a rotina repressora do franquismo e da Igreja católica.
»No pequeno quartel, além do meu pai, havia outros três guardas civis vestidos rigorosamente de cinzento, com os tricórnios reluzentes. Cumprimentavam-se, emborcavam um bom trago de Anis del Mono, e, seguidamente, dirigiam-se para o canto da armaria. Aí, no meio de espingardas e pistolas, encontravam-se ordenados por ordem alfabética os livros dos autores que mais os apaixonavam, quase todos eles existencialistas.
»Às vezes, um deles saía do quartel e regressava com um prisioneiro acusado de roubar uma vaca e, de imediato, outro guarda civil, feroz leitor de Kierkegaard, pregava-lhe duas bofetadas ao mesmo tempo que o repreendia por não compreender que ele se pudesse sentir atraído por uma vaca e considera-la única, embora para a vaca ele não passasse de um homem entre milhares, carente de individualidade. Em seguida, outro guarda civil dava outro tabefe ao prisioneiro e explicava-lhe que, de acordo com a correcta interpretação do Dasein de Heidegger, não devia ter permitido que o prendessem, pois a sua culpa existiu apenas no momento em que roubou a vaca, não antes nem depois. O encarregado de lhe dar a terceira bofetada era um guarda civil andaluz, fanático de Camus, que, chamando-o «gémeo de Meursault», quase o convencia de que aquela e todas as bofetadas, na realidade, não lhe doíam porque estavam dirigidas à sua cara mesmo antes de ele existir, e, portanto, nascera com aquela dor. O meu pai, pelo contrário, devoto de Sartre, aplicava-lhe um par de pontapés e depois soltava-o, explicando aos outros que se era certo que havia uma marca bem nítida numa perna da vaca, a individualizar o proprietário, também o era que os homens interpretam os signos à sua maneira.
»Geralmente, terminavam os dias de serviço a discutir acaloradamente os limites do finito e do infinito na obra de Hegel. Então, bebiam outro trago de Anis del Mono, penduravam os tricórnios e davam o dia por concluído.
O meu amigo Miguel Rojo concluiu a sua intervenção em meio de um denso silencia da intelectualidade.
– A tua aldeia deve ser a Atenas das Astúrias – disse um.
– O que quer dizer que o conhecimento rupestre existe – ponderou outro.
E o meu amigo Miguel Rojo retirou-se a pensar como é fácil fazer felizes os intelectuais.



[1] Retirado do livro «Histórias daqui e dali», de Luis Sepúlveda (com tradução de Henrique Tavares e Castro), Porto Editora, Novembro de 2010 (1.a edição).
[2] Personagens cervantinos que dão o nome a uma das Novelas Exemplares, como informa o tradutor Henrique Tavares e Castro.

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