Beaumont
é formada por duas cidades completamente distintas: Beaumont-Igreja, na parte
mais elevada, com a velha catedral do século XII, o Bispado, que data apenas do
século XVII, e as suas mil almas apenas, apertadas, sufocadas no fundo das ruas
estreitas; e Beaumont-Cidade, no sopé da colina à beira do Ligneul, antiga
povoação que a prosperidade das fábricas de rendas e baptistas enriqueceu e
aumentou, ao ponto de contar cerca de dez mil habitantes, com praças espaçosas
e uma bela prefeitura de traçado moderno. Os dois cantões, o cantão norte e o
cantão sul, quase só mantêm entre si relações administrativas. E, embora a umas
trinta léguas de Paris – vai-se lá em duas horas –, Beaumont-Igreja parece
enclausurada ainda nas antigas muralhas, das quais não existem senão três
portas. Vive ali uma população estacionária, especial, que leva a mesma
existência que os seus antepassados levaram, de pai para filho, desde há
quinhentos anos.
A
catedral explica tudo, criou tudo e conserva tudo. Ela é a mãe, a rainha,
verdadeiro colosso no meio do pequeno aglomerado de casas baixas, semelhando
uma ninhada, friorentamente abrigada sob as suas asas de pedra. Não se vive lá
senão para ela e por ela; as indústrias não trabalham, as lojas não vendem,
senão para a alimentar, a vestir, a manter, a ela e à sua clerezia, e, se ainda
se encontram alguns burgueses, são os últimos representantes das multidões
desaparecidas. Ela domina no centro, cada rua é uma das suas veias e a cidade
só através dela respira. Daí esta alma duma outra época, este adormecimento
religioso do passado, esta cidade enclausurada que a cerca, perfumada dum velho
perfume de paz e de fé.
E, de
toda a cidade mística, a casa dos Hubert, onde Angélica ia, daí em diante,
viver, era a mais próxima da catedral, aquela que a sentia agarrada à própria
carne. A autorização para a sua construção ali, entre dois contrafortes, tinha
sido dada, outrora, por algum cura desejoso de estar mais perto do fornecedor
da sua sacristia, mestre bordador antepassado desta geração de bordadores. Do
lado sul, a massa colossal da igreja limitava o estreito jardim: primeiro, o
círculo das capelas laterais, cujas janelas davam para as platibandas; depois,
o corpo elegante da nave, protegido pelos arcobatentes, e, por último, a grande
cúpula coberta de lâminas de chumbo. O sol nunca penetrava no fundo desse
jardim, apenas a hera e o buxo cresciam aí, viçosamente, mas essa sombra
constante que descia do pico gigantesco da abside, uma sombra religiosa,
sepulcral e pura, que cheirava bem, era muito suave. Na semiobscuridade
esverdeada, duma frescura calma, as duas torres deixavam apenas ouvir o toque
dos seus sinos. Mas a casa inteira guardava a sua vibração, agarradas às pedras
velhas, fundida nelas e vivendo do seu sangue. Ela estremecia às menores
cerimónias; em cada uma das suas salas, embalando-a com um sopro sagrado, vindo
do invisível, ressoavam as missas solenes, os acordes dos órgãos, a voz dos
chantres e até mesmo o suspiro, sufocado, dos fiéis; e, através da parede, às
vezes até pareciam escapar-se vapores de incenso. […]
In «O Sonho», romance de Emílio Zola (tradução de Maria do Carmo Santos), Colecção «Livros de Bolso
Europa-América» (n.º 85), Publicações Europa-América, Mem Martins (Lisboa),
Junho de 1974 (1.ª edição).