Imagem encontrada em http://www.olivella.it/
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Olhe-me
agora para estas árvores em perspectiva deste lado e daquele, ao longo dos
passeios deste nosso Corso di Porta Vecchia; que ar confuso, pobres árvores
citadinas, tosquiadas e penteadas!
Provavelmente
não pensam, as árvores; os animais, provavelmente, não raciocinam. Mas se as
árvores pensassem, meu Deus, e pudessem falar, quem sabe o que diriam estas
pobrezitas que, para que nos façam sombra, obrigamos a crescer no meio da
cidade! Parecem perguntar, ao verem-se reflectidas nestas montras de loja, o
que estão a fazer aqui, entre gente atarefada, no meio da ruidosa barafunda da
vida citadina. Plantadas há muitos anos, não passam de árvores franzinas e
tristes. Ouvidos, não mostram tê-los. Mas quem sabe, talvez as árvores, para
crescer, precisem de silêncio.
Já esteve
alguma vez na praceta Olivella, fora das muralhas? No antigo conventinho dos
Trinitários brancos? Que ar de sonho e de abandono naquela praceta, e que
silêncio estranho, quando das telhas negras e musgosas do velho convento
assoma, menineiro e intensamente azul, o riso da manhã!
Pois bem,
todos os anos a terra, ali, na sua estúpida ingenuidade maternal, tenta
aproveitar-se daquele silêncio. Se calhar julga que ali já não é cidade, que os
homens abandonaram aquela praceta, e tenta apoderar-se dela, estendendo muito
calada, muito devagarinho, por entre o empedrado, uma remessa de pés de erva.
Nada mais fresco e tenor que esses delgados e tímidos fios de erva, que em
breve fazem verdejar toda a praceta. Mas infelizmente não duram mais de
um mês. Ali é cidade; e não é permitido aos fios de erva despontarem. Todos os
anos vêm quarto ou cinco varredores; acocoram-se no chão e arrancam-nos com uns
ferrinhos que têm.
No outro
ano vi ali dois passarinhos que, ao ouvirem o rangido daqueles ferrinhos nos
quadradinhos ásperos e cinzentos do empedrado, voavam da sebe para as goteiras
do convento, dali para a sebe de novo, e abanavam a cabecinha e olhavam de
través, como se perguntassem, angustiados, o que estavam aqueles homens a fazer.
– Então
não vêm, passarinhos? – disse-lhes eu. – Não vêm o que estão a fazer? Estão a
fazer a barba a esta velha calçada.
Fugiram
dali horrorizados, aqueles dois passarinhos.
Abençoados,
que têm asas e podem fugir! Quantos outros bichos não podem, e são apanhados,
aprisionados e domesticados nas cidades e também nos campos; e quanto é triste
a sua forçada obediência às estranhas necessidades dos homens! Que dizem eles
disso? Puxam a carroça, puxam o arado.
Mas talvez
eles, os animais, as plantas e todas as coisas, também tenham um sentido e um
valor para si, que o homem não é capaz de entender, por estar cingido ao
sentido e ao valor que ele próprio dá a uns e a outras, e que a natureza muitas
vezes, por seu lado, mostra não reconhecer e ignorar.
Seria bom
que houvesse um pouco mais de entendimento entre o homem e a natureza. Muitas
vezes a natureza diverte-se a mandar pelos ares todas as nossas engenhosas
construções. Ciclones, terremotos… Mas o homem não se dá por vencido. Bichinho
perseverante, reconstrói, reconstrói. E tudo para ele é matéria de
reconstrução. Porque tem em si aquela tal coisa que não se sabe o que é, que
por força o leva a construer, a transformer a seu modo a matéria que lhe
oferece a natureza, ignora talvez e, pelo menos quando quer, paciente. Se ele
se contentasse apenas com as coisas sobre as quais, até prova em contrário, não
se sabe se possuem a faculdade de sentir o suplício causado pelas nossas
adaptações e pelas nossas construções! Mas não, senhor. O homem até se toma a
si próprio como matéria, e constrói-se, pode crer, como uma casa.
Você
acredita que se conhece, se não se construir de alguma maneira? E que eu posso
conhecê-lo, se não o construir à minha maneira? E você a mim, se não me construir
a seu modo? Só somos capazes de conhecer aquilo a que conseguimos dar forma.
Mas que conhecimento pode ser esse? Será essa forma a próprio coisa? Sim, tanto
para mim como para si; mas não do mesmo modo para mim que para si; tanto é
verdade que eu não me reconheço na forma que você me dá, nem você naquela que
eu lhe dou; e a mesma coisa não é igual para todos, e mesmo para cada um de nós
pode mudar continuamente, e, de facto, muda continuamente.
Portanto,
não há outra realidade a não ser esta, isto é, a não ser na forma momentânea
que conseguimos dar a nós próprios, aos outros, às coisas. A realidade que eu
tenho para si está na forma que você me dá, mas é realidade para si e não para
mim; a realidade que você tem para mim está na forma que eu lhe dou, mas a
realidade para mim e não para si; e, para mim, eu não tenho outra realidade
senão na forma que consigo dar a mim mesmo. E como? Precisamente construindo-me.
Ah, você
julga que só as casas se constroem? Eu construe-me continuamente e construe-o a
si, e você faz o mesmo. E a construção dura até que o material dos nossos
sentimentos se desfaça e enquanto durar o cimento da nossa vontade. E Porque
acha que se lhe recomenda tanto a firmeza da vontade e a constância dos
sentimentos? Basta que aquela vacile um pouco e que estes se alterem um nada ou
modem minimamente, e adeus nossa realidade! Apercebemo-nos de imediato que não
passava de uma ilusão nossa.
Firmeza
de vontade, portanto. Constância de sentimentos. Mantenha-se forte, mantenha-se
forte para não dar mergulhos destes no vazio, para não dar de caras com estas
ingratas surpresas.
Mas que
belas construções daí resultam!
In «Um, ninguém e cem mil», romance de Luigi
Pirandello (revisão de Cláudia Chaves de Almeida), Cavalo de Ferro, Lisboa,
Fevereiro de 2014 (3.ª edição).
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