Coimbra, 5 de Junho de 1953 – Acabada a publicação de cada volume de Diário, vem-me um tal nojo por estas notas, que fico vários dias incapacitado de as escrever. Porque são depoimentos à queima-roupa, sem nenhuma perspectiva, reacções directas, em bruto, parecem-me depois pedradas irresponsáveis às vidraças do tempo. Pode salvá-las, evidentemente, a própria sinceridade que há nas atitudes irreflectidas, apaixonadas, de afogadilho, que, por isso mesmo, são borrifadas habitualmente pela anilina simpática do perdão. Mas a verdadeira literatura é feita a posteriori. Um romance cuja acção se faça passar nos séculos transactos beneficia de toda a experiência do actual. O autor que descreve a adolescência, fá-lo com as manhas do adulto. Ora um diário que tenha um mínimo de honradez, e é o caso presente, apanha a vida no salto do berço, nua e desprevenida. E eu sinto-me, ao lê-lo, como um parolo em coiro nas inspecções. Pessoalmente, apenas lhe encontro uma significação positiva: testemunhar passo a passo o que foi a crucificação espiritual dum homem insubmisso, que nem no comportamento íntimo, nem no público, se rendeu a uma época incapaz de compreender ou tolerar a mais inofensiva opinião tresmalhada, e que se esforça por esmagar a liberdade do pensamento dentro das próprias consciências, para que os cidadãos, à semelhança dos servidores dos haréns, preventivamente castrados, não possam conhecer sequer assomos da virilidade. Época que toda a minha fisiologia repele, e que me leva a estes desabafos de revoltado, a que, apesar de tudo, acabo por dar continuidade. Ficarão no meu caminho como votos de sobrevivência, imposições quotidianas feitas ao poeta pelo instinto de conservação.
In «Diário (7.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, Abril de 1983 (3.ª edição, revista).
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