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A bússola serve para indicar o Norte.
A existência de um Norte estabelece uma orientação, um tracejado com o qual
passamos a contar. Pode acontecer ao viajante, quando retira a bússola do seu
bolso, que esta tenha deixado de funcionar. Mas nesse caso, o viajante sabe que
o problema é da bússola e não lhe passa pela cabeça colocar em causa a
existência do Norte. Tomemos agora a bússola como metáfora da relação que mantemos
com o sentido. Houve, de facto, um tempo em que as fontes de sentido
(religiosas, políticas e éticas...) exerciam uma atracão capaz de polarizar e
de assegurar todas as procuras. Essas fontes tinham o magnetismo assertivo da
agulha de uma bússola e as respostas que davam pareciam simples, naturais e
inquestionáveis.
Mas mudanças e ruturas culturais
aconteceram. E deu-se uma passagem que podemos descrever assim: na orientação
das nossas viagens deixámos de recorrer à bússola e passamos a utilizar o
radar. Isto significa o quê? Significa que não estamos mais ligados a uma
direção precisa. É verdade que o radar vai em busca do seu alvo, mas essa busca
implica agora uma abertura indiscriminada, plural, móvel. Com a bússola era-nos
claramente apontado um Norte, e só uma direção: o radar vem potenciar e
complexificar a procura. Diversificam-se os sinais e multiplicam-se igualmente
os caminhos. As vias da procura espiritual deixaram de ter sentido único.
Hoje estamos perante uma ulterior
mudança, porque mais do que investirmos na procura de sinais aqui e ali,
garantimos agora sobretudo a possibilidade de recebê-los. Se, antes, o radar
estava à procura de um sinal, hoje somos nós a procurar um canal de acesso
através do qual os dados possam passar, sem no entanto termos nós
necessariamente de fazer a procura. Quando um dado fica disponível (um e-mail, por exemplo), recebemo-lo de
forma automática porque temos aberto um canal de receção. O problema atual não
é, portanto, encontrar a mensagem de sentido mas descodificá-la.
Os tempos estão a mudar. E os tempos
de mudança são inspiradores, não o esqueçamos. O que nos está a ser dito? – é a
pergunta necessária. O que é que esta avalanche cultural nos revela? De facto,
a grande crise, a mais aguda, não é sequer a dos acontecimentos, decisões e
deserções que nos trouxeram aqui. Dia a dia, sobrepõe-se um problema maior: a
crise de interpretação. Isto é, a falta de um saber partilhado sobre o
essencial, sobre o que nos une, sobre o que pode alicerçar, para cada um
enquanto indivíduo e para todos enquanto comunidade, os modos possíveis de nos
reinventarmos.
In «O Hipopótamo
de Deus – Quando as perguntas que trazemos valem mais do que as respostas
provisórias que encontramos», de José Tolentino Mendonça, Colecção Poéticas do
Viver Crente (Série JTM), Paulinas Editora, Prior Velho, Outubro de 2013 (3.ª
edição).
NOTA: O texto segue o
AO90.