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domingo, 8 de setembro de 2013

[Com os créditos firmados], excerto de «A Criação do Mundo – IV», de Miguel Torga

Imagem retirada de http://ralfalves.blogspot.pt
Com os créditos firmados, a clientela ia aumentando e as horas de consultório prolongavam-se. Mas nem o zelo com que me entregava às obrigações da profissão conseguia arredar o pensamento do livro que toda a minha natureza reclamava como uma catarse. Arrancava as últimas energias ao esgotamento do dia, e, num esforço voluntarioso, em que cada frase era uma aposta comigo mesmo, dava-lhe o melhor de mim. Os acontecimentos iam-no progressivamente dificultando, até na medida em que o confirmavam. A angústia que testemunhava de nenhuma maneira poderia beneficiar dessa revalidação. O leitor devia sentir, ao lê-lo, que estava diante dum texto ao mesmo tempo clarividente e cego. Por outro lado, era difícil vencer as dificuldades de uma obra apaixonada, polémica, impetuosa como os sentimentos que a ditavam. Se obedecesse aos ditames da boa razão, deixaria amadurecer o assunto, de modo a que houvesse uma perspectiva suficientemente larga entre o que presenciara e o que escrevia – única maneira de evitar certos atropelos da narrativa, a incoerência de muitos passos, o esquematismo da maioria das cenas. Mas a minha indignação tinha pressa. Convencido de que sem o fogo da paixão tudo quanto queria dizer perderia o sentido, sacrificava conscientemente a solidez da construção à frescura emocional, o luar da eternidade ao sol do presente. Embora de longa data advogasse uma arte viva, onde a circunstância palpitasse significativamente em cada linha, uma arte inserida no contexto temporal, empenhada, sem deixar por isso de ser arte e ser livre, só agora tentava dar expressão plena a esse propósito. Nunca, como no momento actual, a realidade desafiara tão ostensivamente os artistas, e, mais do que nunca, eles sentiam a urgência de a olhar de frente e desmascarar, para que não ficassem sem denúncia e acusação os crimes do mundo. A guerra deixara finalmente de ser uma fúria dissimulada por detrás das convenções. Os exércitos assoladores avançavam já sobre as aldeias, sobre as cidades, sobre as gentes. Uma onda de terror varria a terra. A incredulidade assistia pasmada a pactos monstruosos, havia defecções vergonhosas, faziam-se partilhas infames. O comunismo dava as mãos ao fascismo, um simples traço eliminava dos mapas pátrias seculares, as fossas da intolerância engoliam milhares de vidas. Desgraçadamente, os factos ultrapassavam de longe as previsões do poeta. Como poderia ele deixar no tinteiro a negrura que preludiara o incêndio? Parte do processo, porque nem podia nem queria ficar de fora, ergueria pelo menos o seu protesto, sem dar ouvidos às admoestações sensatas do Dr. Olívio e sem atender às dificuldades da empresa. Era um homem independente, até onde a própria existência o consentia, sem ambições, desligado de compromissos de qualquer ordem, mesmo familiares.

In «A Criação do Mundo – IV» (O Quinto Dia da Criação do Mundo), prosa de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, Abril de 1974 (1.ª edição).

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