Imagem retirada de http://ralfalves.blogspot.pt
|
Com
os créditos firmados, a clientela ia aumentando e as horas de consultório
prolongavam-se. Mas nem o zelo com que me entregava às obrigações da profissão
conseguia arredar o pensamento do livro que toda a minha natureza reclamava
como uma catarse. Arrancava as últimas energias ao esgotamento do dia, e, num
esforço voluntarioso, em que cada frase era uma aposta comigo mesmo, dava-lhe o
melhor de mim. Os acontecimentos iam-no progressivamente dificultando, até na
medida em que o confirmavam. A angústia que testemunhava de nenhuma maneira
poderia beneficiar dessa revalidação. O leitor devia sentir, ao lê-lo, que
estava diante dum texto ao mesmo tempo clarividente e cego. Por outro lado, era
difícil vencer as dificuldades de uma obra apaixonada, polémica, impetuosa como
os sentimentos que a ditavam. Se obedecesse aos ditames da boa razão, deixaria
amadurecer o assunto, de modo a que houvesse uma perspectiva suficientemente
larga entre o que presenciara e o que escrevia – única maneira de evitar certos
atropelos da narrativa, a incoerência de muitos passos, o esquematismo da
maioria das cenas. Mas a minha indignação tinha pressa. Convencido de que sem o
fogo da paixão tudo quanto queria dizer perderia o sentido, sacrificava
conscientemente a solidez da construção à frescura emocional, o luar da
eternidade ao sol do presente. Embora de longa data advogasse uma arte viva,
onde a circunstância palpitasse significativamente em cada linha, uma arte
inserida no contexto temporal, empenhada, sem deixar por isso de ser arte e ser
livre, só agora tentava dar expressão plena a esse propósito. Nunca, como no
momento actual, a realidade desafiara tão ostensivamente os artistas, e, mais
do que nunca, eles sentiam a urgência de a olhar de frente e desmascarar, para que
não ficassem sem denúncia e acusação os crimes do mundo. A guerra deixara
finalmente de ser uma fúria dissimulada por detrás das convenções. Os exércitos
assoladores avançavam já sobre as aldeias, sobre as cidades, sobre as gentes.
Uma onda de terror varria a terra. A incredulidade assistia pasmada a pactos
monstruosos, havia defecções vergonhosas, faziam-se partilhas infames. O
comunismo dava as mãos ao fascismo, um simples traço eliminava dos mapas pátrias
seculares, as fossas da intolerância engoliam milhares de vidas.
Desgraçadamente, os factos ultrapassavam de longe as previsões do poeta. Como
poderia ele deixar no tinteiro a negrura que preludiara o incêndio? Parte do
processo, porque nem podia nem queria ficar de fora, ergueria pelo menos o seu
protesto, sem dar ouvidos às admoestações sensatas do Dr. Olívio e sem atender às
dificuldades da empresa. Era um homem independente, até onde a própria existência
o consentia, sem ambições, desligado de compromissos de qualquer ordem, mesmo
familiares.
In «A Criação do Mundo – IV» (O Quinto Dia da Criação do Mundo), prosa
de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, Abril de 1974 (1.ª edição).
Sem comentários:
Enviar um comentário